São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Os mitos e desafios do setor educacional

EDUARDO GIANNETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma das coisas mais exasperantes na vida brasileira é a dissonância entre o discurso e a realidade –entre o falar e o fazer.
Considere, por exemplo, o caso da educação básica. Em palavras, poucos países do mundo ostentam um clamor e indignação tão veementes. Na prática, o que acontece?
Ano após ano, eleição após eleição, a história se repete. Os políticos de todos os partidos denunciam a deterioração do ensino público e prometem, se eleitos, reverter este quadro e dar prioridade máxima ao resgate da educação.
A obsessão educacional é nossa velha companheira –algumas das páginas mais empolgantes de Rui Barbosa versam sobre o tema. Nada mais justo.
O problema é que o tempo passa, os mandatos expiram, as promessas se renovam e o quadro não se altera. A impressão que se tem, comparando o dito e o feito, é que quanto mais tenebrosa a realidade, mais luminoso o discurso.
Como já notava o diplomata francês Butenval, em 1848, tentando explicar o Brasil a um conterrâneo: "As palavras são por aqui mais vivas que as ações e, de uma forma geral, substituem-nas".
O deslocamento entre o falar e o fazer dá o que pensar. Como explicá-lo? Não sou dos que acreditam que exista uma sinistra conspiração das "elites brasileiras" –seja lá o que for isso– para manter o povo na ignorância secular em que vive. Também não creio que a obsessão educacional dos nossos políticos em campanha seja fruto da hipocrisia ou de um complô para enganar o povo.
É lógico que prometer melhorar dramaticamente a educação no país dá votos e isso ajuda a entender porque os nossos políticos batem tanto nessa tecla.
O que é difícil acreditar é que o oportunismo eleitoral puro e simples –o cálculo frio e cínico do caçador profissional de votos– seja regra entre os candidatos.
Exceções à parte, a esmagadora maioria deles deseja sinceramente fazer o que prega e acredita de boa-fé que, chegando lá, vai conseguir reverter o declínio do ensino e tornar realidade as promessas de campanha.
Mas, então, porque eles não fazem as coisas depois de eleitos? O impasse da política educacional é o mesmo do ajuste fiscal. Todos sabem que é preciso fazê-lo, todos concordam que é urgente implementá-lo, mas ninguém tem poder e autoridade política para fazer o que tem que ser feito.
Nos últimos dez anos, o gasto público com o funcionalismo (fora estatais e bancos oficiais) passou de 5,5% para cerca de 12% do PIB –é o resultado de seis planos de estabilização e uma década de obsessão fiscal.
O fato é que o Estado brasileiro, ao contrário do que muitos supõem, não gasta pouco com educação. O que acontece é que: 1) boa parte dos gastos públicos no setor termina subsidiando a educação de quem menos precisaria de ajuda do Estado para financiá-la; 2) há uma voragem predatória e criminosa no recolhimento e dispêndio de verbas públicas em educação; e 3) não existe qualquer tipo de aferição da qualidade do ensino que permita comparar as escolas para identificar os pontos falhos do sistema e corrigi-los.
O nó do problema é que mexer em qualquer uma dessas áreas da política educacional significa cutucar um terrível vespeiro de privilégios constituídos, corporativismo selvagem e conflitos inter-regionais.
No abstrato, o caminho é claro e estão todos de acordo –a educação brasileira atingiu uma situação vergonhosa e é urgente recuperá-la. Mas, quando se trata de fazer alguma coisa para reduzir um pouco o desperdício, a irracionalidade e a iniquidade, uma resistência surda à mudança se impõe.
Um exemplo concreto ajuda a vizualizar o problema. Especialistas brasileiros e técnicos do Banco Mundial apuraram um fato espantoso. As crianças que nascem em famílias de alta renda recebem, em média, quatro vezes mais verbas do governo para financiar a sua educação do que as oriundas de famílias mais pobres. Como é possível uma coisa dessas?
A chave da aberração está na distribuição dos gastos em educação por níveis de ensino. Do total dos gastos do governo (União, Estados e municípios) em educação, cerca de 68% são destinados ao 1º grau e 23% ao ensino superior, ficando apenas 9% para o 2º grau.
Ao mesmo tempo, o custo para os cofres públicos é 17 vezes maior para cada aluno na universidade (US$ 2,5 mil anuais) do que no 1º ou 2º graus (US$ 150).
Mas, como a esmagadora maioria dos que ingressam nas universidades públicas pertence a famílias de alta renda, são elas que terminam "capturando", em benefício próprio, o generoso subsídio por aluno no ensino superior "público e gratuito".
Paradoxalmente, são os jovens de famílias de menor renda que acabam frequentando –e pagando– as escolas privadas de nível superior.
O mais odioso disso tudo é que a baixa qualidade do ensino público de 1º e 2º graus garante um virtual monopólio desses subsídios no topo do sistema educacional para as famílias de alta renda.
Afinal, só elas podem arcar com os custos de uma escola privada de melhor nível no básico e pré-vestibular e competir com sucesso pelo acesso às vagas nas universidades públicas.
Moral da história: os alunos que ingressam nas universidades públicas brasileiras são já, na sua esmagadora maioria, oriundos dos domicílios mais ricos do país.
Ao terminar a faculdade, eles obterão credenciais e qualificações profissionais que lhes permitirão auferir rendimentos muito acima dos recebidos pelos que não tiveram a mesma oportunidade.
O que poderia justificar que, além dessas enormes vantagens, eles recebam ainda um fabuloso subsídio do governo para financiar sua educação superior?
A correção desta aberração é tão fácil de enunciar quanto difícil de implementar. Basta fazer com que os ricos paguem o seu próprio estudo e que os recursos sejam investidos na recuperação das escolas públicas de 1º e 2º graus.
Na Coréia do Sul, por exemplo, o 2º grau absorve 37% e o superior apenas 11% dos gastos públicos em educação. Isso não impede, contudo, que a proporção de jovens coreanos entre 20 e 24 anos cursando universidade seja exatamente o dobro da brasileira.
As universidades federais e estaduais brasileiras são microcosmos perfeitos do nosso setor público –vastos oceanos de empreguismo pontilhados por ilhas de professores abnegados que teimam em continuar pesquisando e ensinando.
A grande questão é saber se e quando teremos força e determinação para peitar o corporativismo que está sufocando a nação.

Texto Anterior: Poupança inicia o mês com captação negativa
Próximo Texto: A inflação de agosto
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.