São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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Cairo em busca de soluções globais

ANTONIO KANDIR

As eleições e o Plano Real nos têm mobilizado de tal maneira que somos levados a duvidar de que possa haver no momento outro assunto digno de nota. Ledo engano.
A Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, que se realiza no Cairo desde a semana passada, trata de questões que interessam muito de perto não apenas a nós brasileiros, mas também aos demais 5,5 bilhões de pessoas que habitam o planeta.
A simples convocação de uma conferência mundial para discussão de políticas demográficas e de desenvolvimento merece reflexão. Ela revela o reconhecimento de que o acelerado progresso tecnológico, assim como sua concentração em determinadas regiões do mundo, borrou definitivamente a linha demarcatória que distinguia problemas externos de problemas internos a cada país.
Muitos desses problemas não admitem senão respostas globais. Com o avanço da tecnologia nas áreas de comunicação e transportes, os países de capitalismo avançado, onde as taxas de crescimento populacional são reduzidas e os níveis de bem-estar elevados, não podem se manter ao abrigo, a não ser temporariamente e com doses crescentes de discriminação e controle repressivo, de ondas migratórias provenientes de países miseráveis da África e Ásia, onde a explosão demográfica e o atraso tecnológico produzem multidões de famintos dispostos a emigrar.
Também no campo ambiental, o descompasso acentuado do desenvolvimento tecnológico coloca problemas de natureza global. Para os habitantes dos países de capitalismo avançado, não é suficiente que seus governos exerçam controle eficiente sobre a emissão de poluentes e elementos radioativos.
Se os países da periferia do capitalismo não fizerem o mesmo, eles acabarão por ser afetados, como já o são em maior ou menor grau. Em suma, é cada vez mais difícil separar os problemas dos "países avançados" dos problemas dos países "atrasados'.
Não é segredo para ninguém que os problemas de natureza demográfica e ambiental estão estreitamente correlacionados com a pobreza e/ou com o desenvolvimento em bases tecnológicas atrasadas, donde ser fundamental fortalecer esquemas de financiamento e transferência de tecnologia que permitam ir reduzindo as distâncias entre os países de capitalismo avançado e países miseráveis do periferia do capitalismo.
Até aí não haveria novidade, não fosse pelo fato de que a globalização dos problemas, na forma radical que vem assumindo, impõe a redefinição de relações de poder longamente consolidadas entre países, entre países e organizações de caráter supranacional, entre governos e sociedades nacionais.
A verdade é que a globalização radical dos problemas coloca em xeque a noção de soberania nacional nos termos em que tem sido entendida. Mais: torna inadiável o desafio de construir instituições supranacionais que redefinam as relações entre o centro e a periferia do capitalismo e sejam capazes de formular e monitorar a aplicação de políticas de alcance global.
A meu ver, esse é o grande desafio político da humanidade no próximo século, assim como a construção de Estados nacionais foi o grande desafio dos séculos 18 e 19 e sua efetiva democratização, o desafio do século 20.
Pela posição intermediária que ocupa entre os países de capitalismo avançado e países miseráveis, o Brasil pode vir a desempenhar papel importante nesse processo.
Para tanto, devemos ser capazes de responder às perguntas: Quais são nossos reais interesses frente à necessária construção de instituições supranacionais, quanto de nossa soberania estamos dispostos a ceder para compartilhar responsabilidades na formulação e execução de políticas de alcance global, como e em troca de quê?
Para que as respostas não sejam apenas retóricas, é fundamental que o próximo governo tenha um projeto nacional que permita ao país uma postura ativa e não regressiva frente aos desafios da globalização.

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