São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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Vantagens do turismo temporal

ISAIAS PESSOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como a história, enquanto saber ou discurso, é feita de palavras, a palavra enquanto significado, na sua essência portanto, é feita de história. Significados antigos podem ser totalmente esquecidos. Um exemplo: catástrofe hoje não significa mais que desastre ou desgraça. Algo muito diverso da }katá strophé dos trágicos gregos. Então, significava retorno, reordenação. No final da peça, um deus ou um personagem apontava o destino ulterior dos personagens: desgraça e vergonha para os vilões, honra e glória para os heróis e mártires.
A }katá strophé era o retorno à serenidade após as emoções intensas do }pathos. Uma reordenação de fatos e personagens numa harmonia racional, sublimada. Que abolia as ansiedades e emoções que a tragédia suscitara.
A ficção dita "histórica", parece, faz o contrário: promove o retorno a um passado, já sublimado e racionalizado, para reativar as emoções, as ansiedades ou, numa palavra, o }pathos. Episódios e personagens revivem para recriar paixões, emoções, ansiedades.
Então, o romance histórico restabelece a vivência patética de episódios passados, para além da ordenação racional e sublimadora que é o conhecimento propriamente histórico. Como explicar, então, o charme, a sedução de obras como "O Nome da Rosa", em que o leitor se defronta com medos, perigos e situações cruentas?
Ocorre que o passado que se ressuscita, mesmo repleto de terrores, é vivido como uma aventura já consumada. É até relatada pelo protagonista. E, portanto, inofensiva. Na verdade, o novo }pathos é vivido sem impotência, sem angústia: por mais conflituosa ou trágica que seja, a trama é vivida com a segurança, inconsciente até, de que tudo retornará ao plano do sublime ou do racional em qualquer momento. Com a certeza da }katá strophé.
Não ocorre o mesmo, com obras de ficção não-histórica, porque nessas, ou se elabora o cotidiano, ou se decola para a fantasia. No primeiro caso, não se pode sublimar as contradições e conflitos do dia-a-dia nem a eventual sobreposição ou paralelismo a aspectos da vida real do leitor. No segundo, é necessário, quase por definição, prescindir da ancoragem da trama em qualquer ordenação racionalizadora.
Em outros termos, ou o leitor revive o seu quotidiano, através dos personagens ou se abandona à insegurança da fantasia ilimitada, à insegurança do... delírio. Ora, o pensamento delirante fascina porque é fuga de uma realidade tediosa ou sofrida, ou porque é aventura. Mas ele é também ameaça, traz ansiedade, enquanto se arrisca ao desgarramento da órbita da racionalidade. Na medida em que entra no espaço negro do absurdo. Ou da loucura.
É necessário então, para que o prazer da aventura não se desgaste na ansiedade, que não se perca a sensação de poder voltar à racionalidade; ou à sublimação post-factum.
Uma obra de ficção, histórica ou não, explora o prazer lúdico da fantasia, do pensamento delirante e pode fascinar o leitor, se não lhe rouba a segurança de não se extraviar no espaço sideral, de não "se perder de si mesmo". E nisso reside, talvez, o charme do romance histórico: ele é menos uma viagem ao espaço sideral que uma visita ao velho sótão dos avós. Onde se pode reviver pessoas, diálogos e episódios, mesmo dramáticos, com a segurança de que, fechada a porta, dramas, conflitos, glórias e temores se esfumam.
A esse }pathos mais sereno junta-se o prazer da descoberta, quando a trama envolve algum mistério. E então se casa o prazer lúdico da fantasia com o emprego explícito das armas da razão.
O que seduz o leitor de ficção histórica, seria, portanto, o prazer lúdico do pensamento delirante, na revivência afetiva do passado, imune à insegurança ansiógena do absurdo e com a sensação de pleno gozo de sua razão.
O fascínio estaria no equilíbrio tênue entre o real, portanto racionalizável, e o imaginário. O que seduz não é o evidente, nem o absurdo. É o verossímil.

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