São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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Mito e tragédia em Euclides

ROBERTO VENTURA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A leitura de "Os Sertões", de Euclides da Cunha, provoca hoje certa estranheza. É uma obra histórica, que oscila entre o tratamento científico e o enfoque literário. O excesso de termos técnicos e o estilo exuberante, com uma profusão de imagens, provocam fascínio e trazem, ao mesmo tempo, obstáculos ao leitor.
Euclides escreveu "Os Sertões" depois de cobrir, em 1897, a guerra de Canudos como repórter no interior da Bahia. Publicou o livro cinco anos após o término da guerra, para denunciar a chacina dos seguidores de Antônio Conselheiro, sobre a qual silenciara nas reportagens. Mas foi além da narração dos fatos presenciados, ao construir uma teoria do Brasil, cuja história seria movida pelo choque entre raças e culturas.
O leitor de hoje também se surpreende com a divisão da obra em três partes. O relato da guerra, com as quatro expedições militares enviadas contra Canudos até o seu total extermínio, só aparece na terceira e última parte: "A Luta". As duas partes iniciais, "A Terra"e "O Homem", tratam da natureza do sertão e dos seus habitantes e contêm minuciosas análises da geologia e do clima semi-árido, além da discussão das origens do homem americano e da formação do sertanejo e do brasileiro.
Esta divisão em partes se liga às concepções científicas e literárias de Euclides. Baseou-se no naturalista francês Hyppolite Taine (1828-1893), que considerava a história determinada por fatores naturais, étnicos e históricos, para abordar o conflito armado como resultado destas três forças.
Euclides superou, porém, o determinismo geográfico, ao transformar a natureza em personagem dramático, que projeta imagens e sombras sobre a narrativa. A vegetação, com galhos retorcidos, cria formas que lembram coroas de espinhos e cabeças degoladas e permitem antever o martírio dos sertanejos. Descreveu a caatinga com um ritmo binário, que alterna partes rápidas e lentas, para recriar as oscilações do clima, entre a seca e a chuva, e do homem do sertão, cujos surtos de apatia são seguidos de irrupções de energia.
Adotou um modo historiográfico ousado, ao dar um arranjo poético-científico aos fatos selecionados. Sua narrativa oscila entre a perspectiva científica, do determinismo do meio e da raça, e a construção literária marcada pelo fatalismo trágico, que vê inscrito na própria natureza. Recorreu a formas de ficção, como a tragédia e a epopéia, para compreender o horror da guerra e inserir os fatos em um enredo capaz de ultrapassar a sua significação particular. A epopéia gloriosa da República brasileira, pela qual combatera na juventude, adquiriu caráter de tragédia na violenta intervenção militar que testemunhou em Canudos.
O crítico Roberto Akira Goto discutiu, em "A Letra ou a Vida" (Unicamp), a concepção trágica e fatalista da história do autor de "Os Sertões". Euclides pensou a história a partir de fatores naturais, estudados pela ciência, e de forças obscuras e ancestrais, assunto da poesia e do mito. Construiu Antônio Conselheiro como personagem trágico, guiado por maldições hereditárias e crenças messiânicas, que o levaram à loucura, à liderança de Canudos e à queda na desgraça. Observou, com sarcasmo, que Conselheiro entrou "para a história como poderia ter ido para o hospício".
Euclides tinha predileção por modelos gregos e franceses que aplicava à sua obra e vida. Em carta ao poeta Vicente de Carvalho, de fevereiro de 1909, referiu-se à fatalidade como "maldade obscura e inconsciente das coisas", que inspirou a concepção trágica dos gregos. Dizia ser ele próprio um "misto de celta, de tapuia e grego", para falar do encontro entre sua educação brasileira e a cultura greco-francesa, que o levara à retórica clássica e à ciência naturalista. Adotou, na juventude, o ideário da Revolução Francesa, que divulgou em artigos de jornal de propaganda da República.
"Os Sertões" é uma obra híbrida, que transita entre a narrativa e o ensaio, entre a literatura e a história. Com sua mescla de gêneros e linguagens, provoca estranheza no leitor de hoje. Mas mantém interesse pela escrita literária e pela interpretação do Brasil como país trágico, dividido entre as grandes cidades e um interior desconhecido e ameaçador. A guerra mostrou para Euclides que não existe unidade nacional, nem tampouco vencidos e vencedores: a barbárie está por toda parte.

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