São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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Riefenstahl sem preconceito

ESTHER HAMBURGUER
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE MONTREAL

Ray Mueller é o diretor de }Leni Riefenstahl - A Deusa Imperfeita ("The Horrible, Wonderful Life of Leni Riefensthal", que será exibido em São Paulo nesta quarta, na Mostra Banco Nacional de Cinema), o polêmico documentário sobre a inventora do filme de propaganda e autora dos mais famosos libelos nazistas. O sucesso do documentário feito para TV, mas rodado em 35mm, é tal que ganhou as salas de cinema em vários países.
Nele, Leni Riefensthal procura desmentir seu envolvimento com os nazistas alegando que desconhecia os horrores praticados por Hitler. Mais que isso, porém, comenta com genialidade os recursos de movimento de câmera e edição que criou para cobrir os congressos do partido e as olimpíadas. Ficamos sabendo por exemplo que algumas das conhecidas tomadas das mobilizações de massa do Reich em "The Triumph of the Will", foram feitas por uma pequena câmera que sobe por um mastro, junto com a bandeira.
Hoje com 91 anos, a cineasta e bailarina, artista popular na Alemanha dos anos 30, não perdeu a energia. E o filme de Ray Muller deriva sua força da tranquilidade com que, sem deixar de confrontar Leni Riefensthal nas incongruências de sua versão dos fatos, permite que ela se defenda. Assistimos à reação intempestiva da entrevistada ao ser interpelada sobre assuntos delicados. Ela agarra o diretor pelo braço e se recusa a falar "à luz do dia. Por outro lado, ela nos seduz quando, sentada na moviola, descreve com paixão as soluções criadas para cada tomada de um filme.
Mentira ou verdade, inocente ou culpada, 50 anos depois da invasão da Normandia, em tempos de crise das ideologias, Leni Riefensthal é o mote para a discussão da responsabilidade política e social do artista. Sua história é a de quem preferiu estar em sintonia com o senso comum de sua época, a se levantar contra a opinião da maioria. Ray Muller falou à Folha em Montreal logo após a exibição de seu filme no "Input".

Folha - Como surgiu a idéia para este filme?
Ray Mueller - Não partiu de mim. Foi idéia dela. Nos últimos 30 anos Leni Riefensthal foi procurada por propostas semelhantes de todos os lugares do mundo, e sempre disse não. Mas finalmente percebeu que não viveria para sempre, e que se não fizesse um filme agora, talvez não fizesse nunca. Então ela procurou um produtor, o produtor procurou um diretor e o resto você sabe.
Folha - O sr. tem alguma idéia de como ela imaginava que o filme seria feito?
Mueller - Ela não teve nenhuma palavra sobre o filme. Nós prometemos ser tão fiéis quanto possível, sem deixar de ser críticos. Essa foi a premissa. Ela pensou que estávamos fazendo uma homenagem, mesmo quando explicamos que nenhuma televisão do mundo exibiria uma homenagem. Não podíamos fazer isso. Não era meu trabalho fazer isso. Mas ela frequentemente não compreendia.
Folha - O filme mostra ela ficando brava por exemplo quando o senhor pergunta sobre sua relação amorosa com Goebbels...
Mueller - Ela dizia: "Meu diretor está me fazendo estas perguntas embaraçosas, como você pode ousar fazer isso?"
Folha - Ela esperava que o filme fosse uma defesa dela?
Mueller - É, ela queria uma coisa reverente. Mantivemos entrevistas diárias durante seis meses. A primeira semana foi difícil. Ela suspendeu os trabalhos duas vezes.
Folha - Durante a produção do filme o sr. tinha noção de que o trabalho seria polêmico?
Mueller - Eu sabia que mexer com Leni Riefensthal é mexer com água fervente. Estava sob pressão do produtor que achava que Leni Riefensthal poderia morrer a qualquer momento e que eu deveria extrair o máximo dela o mais rápido possível. Essa pressão fazia com que minha relação com ela fosse estranha.
Em segundo lugar, nós não podíamos esperar que ela fosse revelar coisa agora que deixou de revelar nos últimos 50 anos. Podíamos confrontá-la com certos fatos e assistir sua reação, mas não dava para saber qual seria o resultado do trabalho. Era difícil até saber se daria um filme. Foi um empreendimento arriscado. Outros diretores se recusaram a fazer. Ninguém sabia tampouco que seria um filme tão longo. Eu tinha um contrato para 90 minutos e acabou saindo duas vezes mais longo.
Folha - Mas o senhor sentia que o filme seria tão provocante? Que as reações ao filme seriam tão fortes?
Mueller - Na Alemanha houve um certo grau de protesto. Você sabe, a mulher é um tabu, Trata-se de um filme sobre uma mulher que é um tabu, não para todos, mas para uma minoria. Alguns cidadãos, como estes senhores alemães presentes ao }Input, manifestaram seu protesto e discordância... Mas na maior parte dos países a reação foi extremamente positiva. Até mesmo na Alemanha a maior parte dos jornais foi muito positiva. Eu acabo de receber uma crítica muito elogiosa aqui no Canadá.
E os críticos americanos tem aquela coisa de "hit parade film", que é sempre filme de ficção. É muito raro que algum documentário esteja na lista deles. No momento meu filme ocupa a quinta posição, "A Lista de Schindler" é o décimo-segundo. Meu filme está colocado antes de "O Piano", antes de muitos dos principais filmes do momento. Então não posso reclamar.
Folha - Eu tomei notas de algumas das reações aqui e tive a impressão de que algumas pessoas estavam como que cobrando algo como um filme de propaganda antipropaganda nazista...
Mueller - É: "Você precisa dizer ao público alemão que esta mulher é demoníaca. Se você não fizer isso, você é demoníaco!"
Folha - Uma das razões pelas quais o filme causa polêmica é que não aparecem outras pessoas para questionar a versão de Leni Riefensthal...
Mueller - Eu queria focalizar nela. Nesse tipo de documentário se você tem professor X, tem professor W. E aí você perguntaria porque professor X e não Y. Tudo bem, existem muitas testemunhas e especialistas que poderiam ter sido entrevistados, mas eu optei por não introduzir outras faces.
Folha - Há cobranças de que o senhor deveria ter sido mais agressivo no questionamento da versão de Riefensthal...
Mueller - As acusações de envolvimento com os nazistas renderam a Leni Riefensthal 50 processos e o ostracismo. Ela foi absolvida nos 50 processos. Eu fui incapaz de provar erro nestas absolvições. Eu poderia ter perguntado mais sobre isto ou aquilo. Mas não o fiz. Que mais posso dizer? Você não pode extrair informação de alguém que não está disposto a dá-la.
Folha - Em sua opinião, qual a importância para o filme de se saber se a versão dela é verdadeira ou falsa?
Mueller - Pessoalmente eu não sei se ela está mentindo o tempo todo. O ponto principal do filme não é apontar ou acusar alguém. A questão principal é discutir a responsabilidade do artista sob ditaduras ou tempo difíceis. É uma questão antiga. Riefensthal tem um trunfo quando levanta essa questão sobre Eisenstein.
Qualquer cineasta trabalhando sob ditaduras tem os mesmos problemas. Como ele pode fazer seu trabalho sem trair suas idéias? Será que um trabalho de boa qualidade necessariamente impõe as idéias dos ditadores? Temos que viver com esse problema. Cada um tem que resolvê-lo à sua maneira. Ela encontrou a sua própria.

Título: }Leni Riefenstahl - A Deusa Imperfeita"
Diretor: Ray Mueller
Quando: Quarta-feira, 14 de setembro, 16h e 21h
Onde: Espaço Banco Nacional - Mostra Banco Nacional de Cinema; r. Auguta, 1.475, tel 011 288-6780

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