São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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Para White, história recalcou a poesia

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Hayden White acredita que não é possível optar entre arte e ciência. Em seu clássico "Meta-história", lançado originalmente em 1973 e no Brasil em 1992, pela Edusp (Editora da Universidade de São de Paulo), o professor do departamento de retórica de Berkeley e de história da consciência na Universidade de Santa Cruz (Califórnia) mostrava como o discurso histórico e das ciências humanas tem a mesma origem das ficções.
White parte da teoria dos tropos (metáfora, metonímia, sinédoque e ironia) e analisa como essas figuras de linguagem, na base de todo processo de consciência, determinam tanto o discurso da história como o da literatura.
Para White, as pretensões científicas da história a partir do século 19 foram responsáveis pelo recalque de sua parte poética e imaginativa, criando uma distinção "realista" entre fato e ficção que precisa ser superada, assim como ocorreu nas artes e na literatura modernas.
"Trópicos do Discurso - Ensaios sobre a Crítica da Cultura", uma coletânea de textos do autor a ser publicada ainda este semestre pela Edusp, trata desse e outros temas, como a crise da teoria literária. White falou à Folha por telefone, de Santa Cruz.

Folha - Como você vê o recente interesse pela história como um discurso literário, com trabalhos como os de Peter Burke, Simon Schama e o seu? Dentro da lógica do seu trabalho, você diria que esse interesse é irônico ou um esforço para salvar a pertinência da história hoje?
Hayden White - Pessoas como Simon Schama estão trabalhando com uma concepção mais antiga da relação entre texto histórico e texto literário. Acredito que a distinção entre fato e ficção foi transcendida pelo modernismo literário. O que vemos na crítica moderna e na ficção das vanguardas é que a distinção entre fato e ficção não pode ser facilmente mantida quanto se trata de escrever sobre aspectos da realidade como o passado.
No debate sobre a representação do Holocausto e do período nazista na Alemanha, muitos argumentam que esse tipo de acontecimento não pode ser representado com as antigas noções de realismo literário em que os textos históricos se basearam até recentemente.
Eu e outros críticos que analisam o discurso sentimos que o modernismo, com pessoas como Gertrude Stein, Ezra Pound, Proust, James Joyce e outros, imagina um modo de representação que eclipsa a distinção entre fato e ficção, que por sua vez é baseada numa concepção ingênua de concretude.
Se você parte dos trabalhos escritos por historiadores, você tem que ter consciência de que, para além do que eles dizem estar fazendo, o que eles chamam de passado é uma construção, uma construção feita durante a própria escrita. A escrita experimental dos grandes modernistas nos mostra uma via para problematizar a representação do passado.
Folha - Se história e ficção têm a mesma origem, qual a função específica da história?
White - O conhecimento histórico é invenção de uma cultura particular num determinado momento. Lévi-Strauss diz que o que o Ocidente chama história é o seu próprio mito. Essa história foi estabelecida como verdade em contraposição ao mito, com uma função ideológica distinta.
A consciência e o conhecimento históricos ocidentais nasceram no momento que que se formavam as nações no século 19. A história tinha a função de oferecer genealogias a essas novas configurações políticas. Ela continuou fazendo isso no século 20, quando as grandes potências e os impérios multinacionais tiveram necessidade de uma justificativa genealógica.
Folha - Existem historiadores mais ficcionais que outros?
White - Na história do texto histórico, você tem uma figura como Jules Michelet, no início do século 19, que fez muito dentro do que chamamos escrita experimental nos seus esforços de dar aos leitores um acesso ao passado. Michelet é um exemplo perfeito de alguém que violou as regras e os cânones que identificavam o texto factual em contraposição ao que era visto como ficção naquele tempo, como o romance histórico.
Existem historiadores que escrevem violando as ortodoxias do texto factual de seu tempo. Jacob Burckhardt, o historiador suíço, inventor da Renascença, é um exemplo de escritor experimental. Seus textos são muito diferentes dos historiadores convencionais.
No nosso tempo, escritores como Le Roy Ladurie, na França, experimentaram maneiras de lidar com períodos da história de que não temos conhecimento: como lidar com o acontecimento imaginário, como lidar com o acontecimento que você tem que imaginar em vez de documentar. Sempre houve escritos experimentais que romperam as fronteiras.
Minha questão é que a cultura modernista e agora pós-modernista transcendem a velha distinção do século 19 entre fato e ficção na nova concepção da escrita como um processo de invenção que não está nem de um lado nem de outro.
Folha - Você cita Nietzsche várias vezes no seu livro. Está tentando confraternizar Nietzsche com a história, já que reivindica um valor poético para ela?
White - Nietzsche não era contra a história. O que ele escreveu sobre a história sugere que as pessoas escreviam-na por diversos motivos e de diversas maneiras. Todas essas técnicas ou modos de consciência estão a serviço de impulsos vitais ou destrutivos de natureza política e social.
Nietzsche é um "perspectivista" no final das contas. Ele diz que o conhecimento só é possível dentro de perspectivas específicas, que o conhecimento é construído a partir do interior dessas perspectivas. Compartilho essa visão.
O que a história não fez foi historicizar seu trabalho. Os historiadores não levaram em conta que o conhecimento histórico é algo que responde a preocupações e interesses culturais específicos. O historicismo fez isso com todos os produtos culturais, à exceção do conhecimento histórico. Nietzsche estava fazendo isso.
Folha - Você cita Lacan, que partia do princípio de que tudo era linguagem nas relações humanas. Como é possível haver, dentro desse ponto de vista, uma metalinguagem e, consequentemente, uma meta-história?
White - Lacan não disse que tudo é linguagem, mas que só podemos ter conhecimento das coisas pela sua formulação na linguagem. Uma tradição anterior das ciências humanas e sociais tratava a linguagem como um meio transparente, representando uma verdade extralinguística. Lacan é parte da concepção do século 20 de que a linguagem não é apenas um transportador do conhecimento mas um momento e um elemento da construção do conhecimento.
Uma das coisas de que trata a filosofia do século 20 é a impossibilidade de imaginar o pensamento sem a linguagem. Você passa a se perguntar, a partir daí, até que ponto o pensamento humano é uma função do protocolo linguístico, das linguagens que usamos para caracterizar o mundo.
O que gosto no trabalho de Lacan é como ele redefine o papel e a noção da imaginação do real. Em certo sentido, até concepções científicas do mundo natural e físico são imaginações desse mundo. Lacan pergunta por que as pessoas procuram obsessivamente um tipo de conhecimento, o que leva a cultura ocidental a destruir a natureza para conhecê-la.
Folha - Por que você diz que nenhuma metáfora é errônea?
White -A linguagem figurativa representa asserções que não se enquadram nas rubricas }verdadeiro ou falso. As metáforas têm que ser medidas pelo seu efeito, sua originalidade, sua concepção pragmática da linguagem, seu valor de choque ao propor uma nova forma de representar a realidade.
Folha - Você estaria propondo um relativismo absoluto no que diz respeito ao conhecimento?
White - Não. É um relativismo que diz que o conhecimento é produzido sempre dentro de um determinado contexto cultural. Daí a dificuldade de medir o valor real, em termos absolutos, de representações conflitantes do mundo. Isso é mais verdadeiro quando se trata do passado, quando, por definição, o fenômeno não está mais à disposição da percepção ou do controle experimental.
Não sei o que seria um relativismo absoluto. Posso dizer que minha própria posição é relativista e que minha própria visão deve ser tomada dentro de um específico contexto e em relação a certos debates que ocorrem hoje.
Folha - Em que lugar você colocaria o seu próprio discurso na classificação que faz dos diferentes discursos da história?
White - Acho que é irônico, no sentido de cético. Uma das coisas que queremos promover em nossas atitudes em relação ao passado, ao presente e ao futuro é um ceticismo sadio. Vai contra todo tipo de dogmas e de metafísica fundacionalista, e contra as reivindicações fanáticas feitas por uma cultura sobre a natureza de outra.
Quando fui ao Brasil, há um ano, havia livros que discutiam a mesma coisa, a natureza do passado brasileiro, como "Estilo Tropical" (de Roberto Ventura, Companhia das Letras). É interessante a discussão da possibilidade da cultura sob as condições do "tropical". Discussões dos modernismos cultural e artístico no Brasil sempre tratam de como o peculiar meio ambiente natural e cultural brasileiro dá uma inflexão diferente a movimentos que podem ser originários da Europa.
Folha - De acordo com a sua teoria, já que os quatro tropos estão na base do processo de consciência, todas as ciências humanas estariam ligadas a uma produção imaginativa. Por que privilegiar a história na sua reivindicação por um componente ficcional de todo discurso?
White - Sou um especialista da história do pensamento histórico. Estou interessado no fato de que, na cultura ocidental, em geral, criou-se um campo específico para estudar o passado. Você não tem isso em outras culturas. Não há uma disciplina, nem a formação de profissionais para isso.
O realismo cultural e político do Ocidente está crucialmente ligado ao conhecimento histórico, que serviu a partir do século 19 como uma espécie de grau zero do realismo. O conhecimento histórico se tornou um modelo de realismo para o senso comum no Ocidente.
As relações entre o conhecimento histórico (ou pretenso conhecimento histórico) e o realismo político, o maquiavelismo na política, são manifestas. Henry Kissinger é um bom exemplo de como uma concepção particular da história leva a uma concepção particular de política internacional, interesses nacionais, justificando todo tipo de operações secretas e permitindo que os EUA assumam uma posição de superioridade moral em relação a outras nações para determinar se devem ter acesso ou não a armas atômicas etc. Tudo isso com a presunção de que há um realismo informando a cultura americana.
Folha - A teoria dos tropos pode funcionar como uma psicanálise dos discursos teóricos?
White - Acho que sim. A própria psicanálise está baseada numa concepção tropológica da consciência humana. "A Interpretação dos Sonhos", um dos textos fundadores da psicanálise, apresenta toda uma tropologia do ato de sonhar e dá a base para uma poética que combina a teoria da tropologia com a noção da invenção poética.
A idéia de tropos é provisória. Uma das coisas que os linguistas ainda precisam estudar é a teoria dos tropos. Roman Jakobson trabalhou nessa direção. Lacan desenvolveu os conceitos de metáfora e metonímia para caracterizar certos modos de consciência.
Para mim os campos de uso metafórico que qualquer escritor desenvolve são projetados para os campos de percepção que funcionam como os objetos de estudo. Me impressionam as maneiras como nossas tentativas de descrever um fenômeno já predeterminam o que pode ser dito sobre esse objeto. Eu precisava de uma teoria da linguagem figurativa. Não sou um linguista determinista. Estudo as formas como as pessoas caracterizam o passado.
Folha - Há alguma relação no fato de a história, com teorias como a sua, reivindicar sua parte artística justamente no momento em que a arte vive uma enorme crise de identidade?
White - Certamente. A arte sempre vive em crise. Ela sempre tem que definir o que ela é, pelo novo. O que as pessoas esquecem é que durante os primeiros dois mil anos de escrita histórica, esses textos eram vistos como uma forma artística e não científica. É apenas no século 19 que a história reivindica sua distinção em relação à arte. Antes, sempre tinha sido vista como um braço da retórica. De repente, começaram a reivindicar uma dimensão científica. Mas a história acabou nunca se estabelecendo como ciência. Ela reprimiu sua própria natureza artística. O resultado é que ela continua tentando manter um estilo distintivo de escrita que a prende ao realismo do século 19. O romance –o texto literário– continua se desenvolvendo, mas o texto histórico ficou preso no século 19.

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