São Paulo, sexta-feira, 23 de setembro de 1994
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Polêmica reúne insultos e exibicão erudita

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Erramos: 23/09/94

Este artigo, foi publicado com um erro de digitação no título. A palavra exibição foi grafada como exibicão.
A polêmica entre os poetas Bruno Tolentino e Augusto de Campos, que ocupa há mais de uma semana as páginas culturais da imprensa paulistana, só não é totalmente lamentável porque também é engraçada, só não é totalmente engraçada porque também é patética, e só não é totalmente patética porque também é insignificante.
Tudo começou quando Tolentino –o não suficientemente festejado autor de "As Horas da Katharina" (Companhia das Letras), dirigiu, no encarte de cultura de "O Estado de S. Paulo", uma crítica feroz à tradução feita por Augusto de Campos de um poema de Hart Crane (1899-1932), publicada no suplemento "Mais!".
O tom do artigo de Tolentino é simplesmente repulsivo. Reúne duas características comuns a certos segmentos intelectuais brasileiros: o gosto pela exibição erudita e o gosto pela cafajestada. Desafia Augusto de Campos a declamar o poema de Crane em inglês, certo de que o poeta concretista perderia um concurso de pronúncia; diz que Augusto de Campos nada entende da métrica inglesa, mostra incorreções. E, ao mesmo tempo, acanalha a própria argumentação: "parnasiasmo de pacotilha", "Assim não dá!", "cordel do augusto doutor", "cachação desfechado no inglês pelo apressadíssimo poliglota", "mata-mosquistos culturais" –assim denomina os concretistas.
Augusto de Campos não deveria ter respondido a Tolentino –quanto a esse ponto, concordam todas as pessoas de bom senso. Mas ele respondeu. E o nível baixou ainda mais. "Tolo, doente e cretino –ou numa só palavra-valise: Tolentino." Augusto de Campos não refutou os problemas levantados por Tolentino, preferindo, mas a raiva o desculpa, invocar argumentos de autoridade –40 anos de carreira poética e tradutória etc.
Um previsível grupo de admiradores de Augusto acorreu num abaixo-assinado contra Tolentino.
O episódio todo é lamentável, mas ilustrativo quanto ao ambiente cultural brasileiro.
Cafajestismo, insulto, argumentos de autoridade e concurso de erudição colonial se explicitaram na polêmica.
Não tenho competência, muito menos paciência, para avaliar qual das duas traduções de Hart Crane é a mais correta.
Observo apenas o seguinte: Bruno Tolentino acabou de publicar um ambicioso livro de poesia, "As Horas de Katharina". Percebe, como muita gente –incluo-me nesse grupo– que os dogmas, as idéias, a maneira de se ler poesia, características do concretismo estão em decadência. Sabe que o formalismo dos irmãos Campos está com os dias contados.
Tolentino engajou-se, então, numa operação de marketing. Resolveu ocupar o espaço, infelizmente vago, de arquiinimigo dos Campos. Quer mostrar que o rei está nu.
E é aí que se revela um componente irônico na história toda. Tolentino poderia muito bem ter feito uma resenha arrasadora da recente coletânea de poemas de Augusto de Campos publicada pela editora Perspectiva.
Preferiu investir contra uma tradução feita por Augusto. Entrou no jogo. O que revela uma grande dose de autoconfiança. Mas também revela, malgrado seu, o peso que a influência dos Campos exerce sobre as discussões em torno de poesia no Brasil.
Só se fala, há muito tempo, em tradução; só se discute tradução, quase só se faz tradução. Isso é influência do concretismo –que assim disfarça a própria esterilidade.
Criticando Augusto de Campos, Tolentino rendeu-se ao padrão vigente de debate a respeito de poesia no Brasil: o "quem sabe, sabe", das traduções laboriosas admiráveis, ou nem sempre admiráveis.
Há outra ironia. Tolentino acusa Augusto de Campos de parnasianismo e de velhice. Faz gozações em torno de uma solução encontrada por Augusto na transposição de poema de Hart Crane: "cinza destes versos"; critica, na tradução de Augusto, a rima "remoía" com "dia", e considera "hilariante" o verso "do ainda vivo e morto abriga", encontrado por Augusto.
Se isso é verdade, cito alguns trechos de "As Horas de Katharina", tão ou mais hilariantes. A começar pelo primeiro verso do livro: "Vi-te montar teu cavalo". Perto disso, o "do ainda vivo o morto abriga" de Augusto de Campos não fica tão mal assim.
Em matéria de rimas, Tolentino não tem muitas lições a dar. Rima "Tirol" com "girassol", e é capaz de estrofes como esta: "Não é Deus o problema./ A humana confusão/ Nasce da velha teima/ da alma com o coração/ (ou vice-versa) e o tema/ não tem resolução/ enquanto for dilema."
Chama Augusto de parnasiano. Mas escreve, no seu livro, que "o invisível... (é) uma opala lânguida".
Outras duas ironias. Tolentino, em meio a todas as violências que desfere contra Augusto, elogia o mais "augustiano", o mais bobo de seus versos na tradução de Hart Crane: "E a gargalhada de Gargântua", por "And, of Gargantua, the laughter".
Gargalhada de Gargântua... Mais do que nunca, aqui vemos os principais problemas da poética concretista: a confiança mística, irracional, nas coincidências sonoras, no significante; a mania do trocadilho; a relação infantil com a linguagem; a certeza jakobsoniana de que um jogo de palavras banal, a saber, o lema da campanha republicana de Eisenhower, "I like Ike" resume todo o saber poético. Sem contar o desprezo pelo conteúdo em favor da caligrafia, das experiências tipográficas, do tecnicamente evidente contra tudo o que de secreto e sensível possa haver na percepção, no entendimento poético do mundo.
E Tolentino, que se arvora em alternativa "mais sabida" contra Augusto de Campos, elogia "a gargalhada de Gargântua".
Augusto e Haroldo de Campos funcionam mais ou menos como um partido bolchevique na Rússia atrasada. Têm o mérito imenso de querer modernizá-la, de divulgar autores desconhecidos. Ninguém fez tanto pela poesia no Brasil quanto eles. Mas ninguém faz tanto de forma tão errada.
Ensinaram gerações analfabetas a apreciar poesia –só que com critérios facilmente adaptáveis a esse analfabetismo. Estatística de vogais e consoantes; jogo do "quem sabe, sabe" de alusões; trocadilhos e caligrafias.
Contra tudo isso, Tolentino resolveu se insurgir. Mas a impressão que dá é a de estar tentando ocupar um espaço que o seu livro de poemas, por si só, não lhe é capaz de assegurar.
Em "As Horas de Katharina" há momentos excelentes, em especial nos sonetos que compõem o "Interlúdio" (págs. 121-133). Mas a intenção de compor um grande livro não se cumpre, perdendo-se na prolixidade, num misticismo amarelado, sem força.
O que Tolentino provou ter, acima de tudo, é uma fenomenal vulgaridade, a de chegar no cenário como o mais sabido dos poetas. Leio com ceticismo o que diz a orelha de "As Horas de Katharina": Tolentino "é hoje um dos autores de maior destaque no meio literário europeu". Misticismo ou mistifório?
Só tenho uma resposta diante dessa polêmica ridícula, e empresto-a à retórica shakespeariana: "uma praga sobre ambas vossas casas".
E que todos descansem em paz.

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