São Paulo, sexta-feira, 23 de setembro de 1994
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Greenaway converte crítica em ilusionismo

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Filme: O Bebê Santo de Mâcon
Direção: Peter Greenaway
Produção: Holanda/Inglaterra/França, 1993
Elenco: Julia Ormond, Ralph Fiennes, Philip Stone e Jonathan Lacey
Onde: Espaço Banco Nacional (sala 2)

Em "O Bebê Santo de Mâcon" ("The Baby of Mâcon", 1993), Peter Greenaway leva ao extremo um lugar-comum que já vinha tentando provar ao longo de sua obra como se estivesse apresentando uma descoberta revolucionária: a vida é um teatro.
Grande parte do sucesso alcançado pelos filmes de Greenaway vem do fato de esse lugar-comum estar travestido por uma estilização pós-moderna, que dá uma aparência mais sofisticada e intrincada ao que, em essência, poderia ser resumido a filosofia de banheiro –o cineasta chegou a fazer um documentário sobre banheiros, onde as pessoas refletiam sobre o tema in loco.
"O Bebê Santo de Mâcon" narra a história de uma cidade em 1659 onde a esterilidade é a norma e o nascimento de uma criança é visto como um milagre, cujos lucros são explorados inicialmente pela irmã inescrupulosa do bebê e em seguida pela Igreja.
Essa história é narrada num palco de teatro, com a platéia se confundindo com o espaço da cena. Na verdade, Greenaway faz da infertilidade de Mâcon uma metáfora de seu próprio tempo e de sua própria angústia como cineasta e artista (ele foi pintor no início da carreira).
Mâcon representa um mundo tomado pela cultura, onde a natureza foi recalcada –daí a infertilidade e o parto visto como uma curiosidade espantosa, um milagre. É uma cultura que se esqueceu de seu próprio nascimento e acredita que tudo é cultura, que a vida é um teatro.
Os filmes de Greenaway costumam oscilar entre a identificação deslavada com esse mundo culturalista (quando se afogam em citações à história da arte, por exemplo) e a ironia (quando deixam de manifestar a vontade sufocada de voltar de alguma forma à natureza, em busca de um sopro de ar). O melhor de sua obra cinematográfica está justamente no eventual equilíbrio entre as duas coisas.
Em geral na obra de Greenaway, a obsessão culturalista é tão forte que o abjeto e o repugnante passam a ser a única forma possível de alcançar algum tipo de natureza, uma paródia histérica de natureza pelas lentes de um mundo que quer acreditar ser exclusivamente cultura.
O sangue, as vísceras e o escatológico são, dessa forma, o que resta da representação da natureza num mundo de onde ela parece ter sido banida; surgem como efeito de uma natureza recalcada.
O universo criado em "O Bebê Santo de Mâcon" é como a metáfora disso tudo, o mesmo tema dos outros filmes do cineasta, só que levado ao extremo de se tornar metalinguagem, reflexão sobre si mesma, teatro dentro do teatro.
Ao final, Greenaway tenta mostrar que teatro e vida são a mesma coisa, que a vida (a natureza) se manifesta dentro do teatro (a cultura) e vice-versa. E o que podia parecer uma espécie de autocrítica contra o culturalismo pós-moderno se converte em apenas mais uma artimanha ilusionista.

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