São Paulo, sexta-feira, 23 de setembro de 1994
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A quinta viagem de Lemuel Gulliver

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Ninguém se admirou com o exílio voluntário a que se submeteu Lemuel Gulliver após as amargas experiências acumuladas em suas quatro históricas viagens.
Na primeira, a Lilliput, encontrou apenas anões morais; na segunda, a Brobdingnag, percebeu que os gigantes que admirara antes, pela força e pela altivez, se desumanizaram devido à arrogância do poder.
Em seguida visitou Laputa, a nação-academia, onde decepcionou-se com a futilidade da ciência abstrata. Seu maior desapontamento foi na escola de ciência política onde os "infelizes" professores pretendiam ensinar governantes a escolher seus auxiliares pela "sabedoria, capacidade e virtude... e outras quimeras impossíveis".
Enfim, foi durante a sua quarta e mais ousada viagem que visitou o país da sabedoria e da racionalidade, a Houyhnhnmlandia, que Gulliver aprendeu quão desnecessariamente corrupta é a humanidade.
Foi pois neste estado de espírito melancólico que o viajante, converso em misantropo, se esquivou nestes últimos 250 anos de todo convívio humano.
Entretanto, este manuscrito, na forma de um diário, em estilo bastante anacrônico, abandonado em uma biblioteca pública de Brasília, é prova suficiente de que o incorrigível viajor fez uma última tentativa após tantos anos de reclusão.
Temos certeza de que o autor é o mesmo Lemuel Gulliver descrito por Jonathan Swift, o grande satirista, devido aos próprios comentários e reminiscências ali inseridos, pois do que mais se admira o autor é do espantoso fato de encontrar nesta quinta viagem justamente o que mais afligia sua alma virtuosa em cada um dos mundos que visitara há quase três séculos.
Apelidou Gulliver este quinto mundo de "Brasilândia". Suas fronteiras não são físicas, ou geográficas. São determinadas pelos costumes de seus habitantes. A primeira anotação de Gulliver em seu diário se refere a uma dicotomia convergente entre Brasilândia e Houyhnhnmlandia, terra habitada por seres racionais e virtuosos com o aspecto de nossos cavalos e por uma espécie degradada de humanóides chamados Yahhoos, vivendo como animais selvagens.
Lá, entre os Houyhnhnmlandia, admirou-se o viajante, conceitos como verdade e honestidade, assim como os respectivos vocábulos, não existiam, a despeito da elevada cultura e inteligência de seus habitantes.
Mas a justificativa, embora surpreendente, para tal omissão é simples. Se ninguém rouba, não há como qualificar, distinguir alguém, pela honestidade. É preciso que se minta para que percebamos a diferença entre a falsidade e a verdade.
Pois bem, em Brasilândia, pelo processo inverso chegou-se à mesma diluição de conceitos tais como verdade, honestidade, virtude. Se todos mentem juntos, em coro, a mentira se torna tão natural que a verdade perde seu objetivo. Não é à toa que Gulliver está atônito. Ele anota em seu diário um exemplo eloquente.
O candidato das elites diz que tem um pé na cozinha, todos os jornais noticiam. No dia seguinte, afirma o mesmo candidato que nunca pôs o pé na cozinha. E com isso sua popularidade aumenta. Em seguida, afirma que costumava comer buchada de bode em Paris. Desmente após. Novo aumento na popularidade. Depois confessa que não dá a mão para gente do povo de medo que lhe levem o relógio. E a cada desmentido aumenta sua popularidade.
Seu maior eleitor confessa, involuntariamente, estar usando a máquina estatal em conluio com uma empresa de comunicações para eleger o candidato das elites e como punição ganha a embaixada de Roma e o aplauso popular.
Gulliver está perplexo. E ainda mais com os intelectuais de Brasilândia, semelhantes aos habitantes da grande academia. Em Brasilândia eles fundem as qualidades dos habitantes de Laputa com as de Lilliput. "Ricupero fez o que todos os políticos fazem. E por isto está absolvido." "Fernandão foi fabricado pela Globo, e daí? Não teria o Lula aceito tão poderoso patrono (ou patrão?)" Estes argumentos dispensam a moral.
Gulliver está envergonhado. Lembrou do caso dos anões do Congresso, tão parecidos com aqueles de Lilliput, e igualmente impunes. Lembrou do poder das empreiteiras, caso já inteiramente esquecido. Não são estes donos de Brasilândia parecidos com os habitantes de Brobdingnag; a diferença é que o poder destes últimos vem de sua força física e da convicção, enquanto as empreiteiras constroem seu poder com suborno e usura. Mas o que impressionou Gulliver é o conformismo impudente dos habitantes de Brasilândia. Bastou uma semana para enterrar a CPI das Empreiteiras.
A última anotação do nosso viajante famoso é, por certo, a mais contundente. Um senador, o presidente do Senado de Brasilândia, teria usado a gráfica do Senado em proveito próprio. Um tribunal acertadamente impede sua reeleição. Até aí, tudo bem. Ou houve crime ou não. Ou a gráfica pertence ao poder público ou ao senador. Não há meio-termo. Será meia honestidade usar dinheiro público para propaganda eleitoral? Então não há meio castigo.
"Não", dizem intelectuais e políticos. "Outros também abusam do dinheiro público." Ali Babá só é ladrão quando está sozinho. Junto com os outros 40 é inocente. Na cadeia, são todos santos. Em Brasilândia, são todos puros se roubarem e mentirem juntos.
Mas Gulliver já não acredita muito nesses seres brasilandenses. Pergunta ele: "será que não estão defendendo a própria pele?". Solidariedade entre transgressores? Quantos dos que estão defendendo o presidente do Congresso que abusou do dinheiro público usando a gráfica do Senado não estão em realidade se precavendo? Quantos podem afirmar que nunca usaram a gráfica em proveito pessoal e defendem o presidente do Congresso que a usou? E quantos, por outro lado, teriam a coragem de confessar que cometeram o mesmo delito e apesar disso, ou por isso mesmo, defendem o presidente do Senado?

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