São Paulo, domingo, 1 de janeiro de 1995
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Com a Cúpula das Américas, feliz ano 2005

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES; JOSÉ CARLOS MIRANDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A Cúpula das Américas, celebrada pouco antes do desastre do México, promete para o continente sul-americano um cenário de (des)integração comercial e financeira com os Estados Unidos para o ano 2005. Sem ficção científica, os primeiros resultados podem ser avaliados pela experiência do Nafta.
A esta altura do milênio, quando os nossos projetos locais do neoliberalismo acabam de obter tantas vitórias, nossa única esperança de abortar a "morte anunciada" reside na força do efeito demonstração do desastre alheio.
Dizem que quando os Estados Unidos espirram a América Latina pega pneumonia. A pneumonia mexicana, apesar de ter um longo período de maturação, tornou-se aguda a partir de dois pequenos espirros norte-americanos: a vitória republicana no Congresso, que põe em xeque a política Clinton de "boa vizinhança" e várias subidas graduais da taxa de juros do FED.
O efeito da subida da taxa de juros americana e as crises cambiais dramáticas são nossas conhecidas desde a crise da dívida externa. Mas a situação atual, dirão os analistas, é completamente diferente! Claro, agora é mais difícil de controlar por causa das políticas de desregulação financeira global.
Estas políticas levaram a uma maciça entrada de capitais de curto prazo desde 1990, que desabaram sobre "os mercados emergentes", qualquer que fosse a situação das balanças de transações correntes dos países receptores ou, até mesmo, a natureza e grau dos seus desequilíbrios macroeconômicos (veja-se a entrada de capitais no Brasil, que obviamente não era candidato "estável" nem "absorvedor líquido" de recursos externos).
Desta vez o México não precisou de um choque de juros à la Volcker, nem de um período de três anos de crise cambial para reverter o fluxo de capitais e provocar uma crise financeira de proporções. Por que sempre começa com o México? Ora, dirão os supersticiosos: porque está "tan lejos de Dios e tan cerca de Estados Unidos".
Para esclarecer os brasileiros que ainda se acham muito diferentes do México e sobretudo chamar a atenção das autoridades competentes, convém fazer uma pequena análise dos "fundamentos" da crise mexicana.
Para isso pedi a ajuda de meu colega da Unicamp, José Carlos Miranda, recém-chegado do México, especialista em estudos de política macroeconômica comparada.
A crise mexicana
Com a estabilização do Plano Brady, o México pôde implementar uma estratégia de estabilização centrada numa âncora cambial, em ajustes fiscais permanentes e abertura comercial e financeira.
A idéia prevalecente entre os economistas oficiais era que se fosse mantida estável a paridade dólar-peso, este se tornaria uma moeda forte, credenciando novamente o México como importador de capitais. Seria o maior mercado emergente no novo quadro de globalização econômico-financeira.
Na realidade, o que se observou como contrapartida do "ajuste pela conta de capitais" foi uma elevação significativa dos passivos de curto prazo do México com o exterior, tanto privados quanto públicos.
Em 1982, estes eram de US$ 89 bilhões e hoje equivalem a US$ 211 bilhões, dos quais US$ 87 bilhões são dívida pública, US$ 26 bilhões são dívidas do setor privado bancário, US$ 26 bilhões do setor privado não-bancário, US$ 27 bilhões são bônus do Tesouro denominados em dólar e US$ 50 bilhões estão no mercado de ações.
A contrapartida deste endividamento crescente com o exterior foi a emissão de dívida pública para neutralizar o impacto da entrada de capitais sobre a liquidez interna e pública para neutralizar o impacto da entrada de capitais sobre a liquidez interna e financiar o serviço da dívida (velha e nova), submetendo a economia mexicana a ajustes fiscais permanentes.
Em 1994, o governo terá despendido US$ 30 bilhões só com o serviço de suas dívidas interna e externa. É a partir desta situação fiscal e da integração comercial e financeira do México com os Estados Unidos (que levou a um déficit comercial da indústria manufatureira de US$ 20 bilhões) que se deve avaliar os efeitos da brutal desvalorização do peso.
Segunda-feira, 19, o governo anunciou uma desvalorização de quase 15%, que levaria o dólar de 3,46 para 4 pesos –como se fosse uma flutuação na banda–, o que permitiu inicialmente aos "insiders" nacionais e depois aos investidores estrangeiros fazer uma extraordinária fuga de capitais.
No dia seguinte, foi anunciada a flutuação livre, com o que o peso entrou em queda contínua. Em três dias, chegou-se a mais de seis pesos por dólar com a perda de US$ 10 bilhões de reservas. Estas, que se encontravam no início do ano em mais de US$ 25 bilhões e em 01/11/94 em US$ 17,25 bilhões, estão hoje em menos de US$ 6 bilhões.
A Bolsa, apesar da brutal valorização do dólar (cerca de 70%, em relação ao dia 16 de dezembro) caiu em pesos. É daí que surge a maior ameaça de crise cambial, dado que o México tinha US$ 50 bilhões na Bolsa, a maior parte dos quais de fundos de pensão de todas as partes do mundo, mas em particular dos EUA.
As negociações que o governo mexicano está empreendendo com o governo americano não dizem respeito apenas ao apoio de US$ 6 bilhões do Fundo de Contingência que o FED deveria colocar à disposição do México. Este fundo, que ainda não está disponível, seria manifestamente insuficiente para sustentar o câmbio, a ser mantido o regime de livre flutuação cambial.
O que os mexicanos querem é o apoio do governo americano para manter no país os principais fundos de pensão. E parecem dispostos a pagar qualquer preço.
Esta negociação afigura-se bem mais difícil do que a da crise da dívida externa de 1982, tanto pelo montante da dívida privada diretamente em dólares, quanto pelos montantes da dívida pública interna em bônus de curto prazo denominados em dólar.
Nem a situação da balança de pagamentos (com um déficit em transações correntes de cerca de US$ 30 bilhões), nem a situação fiscal permitem imaginar a curto prazo um ajuste de US$ 29 bilhões (montante da dívida pública dolarizada), razão pela qual teme-se nas praças financeiras mexicanas que esta dívida possa ser forçosamente convertida em pesos.
Para evitar uma corrida definitiva, as taxas de juros dos Cetes (títulos do Tesouro) elevaram-se de 16% para 32% em menos de três dias. O resultado desta tentativa desesperada só poderá ser avaliado nas próximas semanas, à medida que forem vencendo os títulos públicos que, convém lembrar, são de curto prazo.
A elevação da taxa básica de juros jogou as taxas de empréstimo ao setor privado para 50% ao ano, colocando em posição de virtual insolvência as carteiras de aplicações dos bancos que operam no México que, por sua vez, têm dívidas de US$ 26 bilhões com o exterior. Assim, os bancos estão duplamente ameaçados pelos lados passivo e ativo de seus balanços.
Dada a impossibilidade de estatizar a dívida privada através da estatização bancária, como ocorreu em 1982, é provável que as ações dos bancos caiam fortemente de cotação, abrindo a possibilidade de consolidação das posições credoras e devedoras do sistema bancário internacional que opera no território mexicano. Afinal parece mais fácil mudar a lei bancária mexicana do que a norte-americana. Outra sugestão recente é a "privatização" do petróleo.
Os ventos da crise mexicana chegaram rapidamente à Argentina. Os capitais de curto prazo já estão saindo da Argentina, temendo que o peso argentino também se desvalorize. E a insolvência do banco Extrader coloca a nu a situação dos demais bancos: passivos dolarizados e possibilidade de inadimplência de seus devedores pela subida das taxas de juros.
Tal situação serve de alerta às autoridades brasileiras, no sentido de atentar para a precariedade de um ajuste centrado em déficits em transações correntes, forçando uma sobrevalorização progressiva da paridade cambial e de emissão de títulos públicos denominados em dólar como padrão de financiamento público.
Esta análise não precisa ser usada agora, para não estragar as festas de fim-de-ano, mas quem sabe lá para fins de fevereiro, quando o carnaval passar e os nossos recentes títulos cambiais estiverem vencendo.

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES, 63, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp).
JOSÉ CARLOS MIRANDA, 44, é diretor do Centro de Relações Econômicas Internacionais e professor do Instituto de Economia da Unicamp.

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