São Paulo, domingo, 1 de janeiro de 1995
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Verissimo escreve um parágrafo

MÁRCIA IVANA DE LIMA E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Prisioneiro, de Erico Verissimo, teve sua primeira publicação em 1967 pela editora Globo, dando sequência à série de romances políticos do escritor gaúcho, iniciada com O Senhor Embaixador, de 1965, e concluída com Incidente em Antares, de 1971. A ação se passa em data e local indefinidos, mas tem por base a intervenção americana no Vietnã, conforme entrevistas e depoimentos do romancista. O ponto central da história é o dilema ético e moral de um tenente que questiona seu poder de decidir sobre a vida e a morte de seus semelhantes. Além disso, há a denúncia da crueldade da guerra, que brutaliza o ser humano, reduzindo-o a seu instinto mais primitivo.
Estudar esse manuscrito de Erico Verissimo significa penetrar em seu gabinete particular, com o intuito de desvendar seu processo de criação. E tentar explicar por que o autor desiste de determinada forma, optando por outra, sempre em busca do texto perfeito. Para chegar a ele, no entanto, são necessárias várias etapas, como apontam os esboços e os originais que se encontram no Acervo Literário de Erico Verissimo. O romance O Prisioneiro apresenta, apenas de seu primeiro parágrafo, seis versões que passaremos a acompanhar.
A primeira versão de O Prisioneiro está numa folha de ofício manuscrita a tinta azul e começa com: As monções de inverno haviam passado, entrara a estação seca, e naquele entardecer de junho a abóbada celeste era como uma descomunal ventosa emborcada sobre a antiga cidade imperial que, estendida à beira do rio, parecia arquejar/sufocar, à míngua de ar/oxigênio. Na mesma folha, Verissimo passa um traço horizontal e escreve "variante", substituindo naquele entardecer de junho por no entardecer daquele dia.
Mais adiante, coloca como alternativa para estendida, esparramada, acrescentando de ambas as margens do entre beira e do rio, e decide-se por sufocar e oxigênio. Essa pode ser considerada a segunda versão, na medida em que apresenta algumas modificações significativas que, inclusive, irão se manter no texto final.
A terceira versão é escrita a caneta azul numa folha de ofício e diz: Haviam passado as monções de inverno, entrara a estação seca –e naquele entardecer mormacento a abóbada celeste era como uma enorme ventosa emborcada sobre a velha cidade imperial que dava a impressão de sufocar, ofegante e intumescida, à míngua de oxigênio. Nesse reinício, além de inverter a ordem sintática, a qual será mantida até a forma final, o romancista substitui de junho por mormacento, descomunal por enorme e antiga por velha.
Com tais modificações, principalmente pensando em ofegante e intumescida, Erico parece estar buscando uma descrição sensorial para a cidade, ligada às altas temperaturas da região em que ela se localiza. Além disso, há um enxugamento do texto, concentrando a idéia de calor sufocante numa só frase.
Em nova folha de ofício, Verissimo datilografa esse mesmo texto, mas altera a mão, com caneta esferográfica azul, toda a parte inicial até o hífen, optando por Sopravam já as monções de sudoeste, e ainda substituindo mormacento por de junho.
Acima de oxigênio, Erico escreve "How if the wind was blowing?", como sugestão para acrescentar a idéia de vento soprando. (Saliente-se que é muito comum encontrar nos manuscritos de Verissimo palavras, frases, trechos ou até mesmo cenas inteiras em inglês). É muito provável que Erico tenha feito a rasura no topo da folha após sugerir a inclusão do vento na descrição, pensando que esta ganharia em força, se apresentasse tal sugestão desde o início.
É atrás dessa mesma folha, porém, que o autor rabisca aquela que será a versão mais próxima da final: Haviam já começado as monções de sudoeste, mas naquele entardecer/mormacento/ de junho os ventos cessaram/o ar estava imóvel de repente como se a abóbada celeste emborcada sobre a cidade lhe/aquele trecho de terra e mar/ tivesse sugado/chupado todo o ar e agora ali a velha capital de província/cidade imperial estivesse a sufocar –ofegante e intumescida, à míngua de oxigênio. Volta a dúvida sobre a caracterização do local, além da opção por manter mormacento e de junho juntos, mas parece, pela primeira vez, a idéia de calmaria, contrastando com a movimentação do vento, sugerida na versão anterior. Além disso, a utilização de vários adjetivos ligados à idéia de calor enfatiza o clima sufocante da cidade.
A versão definitiva do primeiro parágrafo do romance O Prisioneiro situa a narrativa temporal e espacialmente, alertando que maio findava, haviam já começado a soprar as monções de sudoeste, mas naquele entardecer mormacento fizera-se uma súbita calmaria em toda a região. Era como se a abóbada celeste, emborcada como uma ventosa sobre a terra, tivesse sugado quase todo o ar dum largo trato de planície, montanha e mar. E a velha cidade imperial, de tão ilustres palácios, templos e tumbas, ali plantada sobre ambas as margens do rio, parecia um organismo vivo palpitante intumescido, a sufocar à míngua de oxigênio. A descrição cresceu a ponto de se tornar, ao mesmo tempo, precisa e plástica, cheia de cores e de luzes.
Mas não é apenas a plasticidade que nos envolve; a sensação de calor sufocante, que Erico buscava desde a primeira tentativa, marca a abertura do texto e permanece por toda a narrativa. É como se experimentássemos antes a opressão e o mal-estar que o tenente sentirá ao longo de todo o romance, atormentado não apenas por suas dúvidas, mas também pela falta de ar e pelo calor.
Através dessa descrição, o romancista faz com que os pensamentos da personagem se tornem táteis, relacionando sensações interiores com exteriores. Há, ainda, a mudança das coordenadas temporais, de junho para fim de maio, e o desdobramento da frase inicial em três, com a consequente ampliação das noções de tempo e de espaço.
O estudo do processo de criação de Erico Verissimo evidencia sua preocupação em alinhar a organização formal do texto com a história que está sendo contada. Sempre à procura da palavra mais adequada, da melhor maneira de descrever ou de narrar e da construção frasal mais apropriada, o autor gaúcho trabalho incessantemente, como comprovam os originais das seis versões do primeiro parágrafo de O Prisioneiro. Isso confirma o apuro linguístico e narrativo que encontramos em seus textos editados e explica a imensa quantidade de leitores que Verissimo sempre teve e tem até hoje.

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