São Paulo, domingo, 1 de janeiro de 1995
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"O livro de Jorge Amado é uma miséria "

Rio, 27.9.37
Prezado Erico,
Aí vai finalmente o "Felicité" (1).
Já tinha recebido a sua carta, mas estive tão doente que não me animei a responder, caracterizando-se a minha moléstia por um absoluto horror à pena, lápis e papel.
Achei interessante o que você diz a respeito de Octavio de Faria. Quem de nós sabe como é realmente a vida? Para cada pessoa ela é diferente –e a estes, a quem Deus dotou de uma sensibilidade mais aguda, mais do que aos outros, é através dela, pelos caminhos sangrentos das experiências que podemos fixar essa coisa sem nome que é uma constante tragédia: a vida. Cada um vê de um modo, tanto tem razão Octavio de Faria quanto Graciliano Ramos, que entre parênteses, a encara de um modo não menos dramático.
E se pudéssemos invalidar certos autores porque a vida que nos apresentam não é a que julgamos certa, não existiria senão um número bem restrito a quem concederíamos o passe de salvação... No final de tudo, só restariam aqueles a quem a vida tivesse dotado de experiências idênticas às nossas...
Acho que não é lícito julgar assim, pois se a concepção de um trágico grego difere da de Pirandello, se um Shakespeare não pode ser anulado a favor de uma Rosamond Lehmann ou um Dostoiévski a favor de um Baring, não quer isto dizer que um ou outro nos mostre a vida falsa, mas assim como os pintores vêem de um modo diferente (a visão que um Degas tem das coisas está longe da de um Van Gogh...) assim também esses outros criadores não podem ver e sentir senão de acordo com a natureza que Deus lhes deu...
O que não é a vida, na minha opinião é a miséria que Jorge Amado acaba de publicar como romance. Pois se enquanto num Octavio de Faria ou num Graciliano Ramos sentimos bem as "pegadas" do autor, em "Capitães de Areia" não encontramos uma só parcela do que é o verdadeiro Jorge Amado, a não ser uma tentativa ingênua de realidade fabricada, essa péssima realidade que tem envenenado quase toda a nossa literatura nestes últimos anos.
Não posso explicar por uma simples carta todo o meu horror diante dessa monstruosidade que os nossos críticos têm considerado "grande romance" –mas posso afirmar sob a minha palavra que me sinto feliz em ser o último dos romancistas numa terra onde semelhante crápula é tido como escritor de grande brilho.
Pouco ou quase nada poderei lhe dizer a meu respeito, pois não tenho conseguido escrever uma só linha. Vinha tentando um romance há alguns meses, mas fui obrigado a parar, pois o mesmo não me agradava de forma alguma. Estava excessivamente "intelectual", antipático, pretensioso e besta.
Espero pacientemente passar esta crise, ouvindo música e tomando banhos de mar, o que tem me auxiliado a curar as chagas abertas pelas últimas brigas –que talvez você já saiba por aí, foram ardentes e definitivas.
Tenho o prazer de comunicar-lhe que, exceto dois ou três, já não tenho ligação com o meio literário brasileiro. Sinto que os meus nervos estão se aquietando e que uma nova vida começa para mim...
Escreva e dê notícias mais compridas sobre seus trabalhos; suas cartas são sempre pequenas e não dizem nada, para quem, como eu, tem sempre tão grande interesse por tudo quanto sai das suas mãos.
Agradeço-lhe sinceramente o que fez pelo meu livro e espero que consiga resolver as dúvidas, com o Katherine Mansfield que segue. Abraços do
Lucio Cardoso

(1) Livro da escritora neozelandesa Katherine Mansfield (1888-1923), "Bliss" no original. Verissimo, que o traduziu para o português, cotejou a tradução francesa emprestada por Lucio Cardoso

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