São Paulo, domingo, 1 de janeiro de 1995
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Um professor no Planalto

GÉRARD LEBRUN

Quer o dia 1º de janeiro seja ou não uma virada na história do Brasil (e eu desejo, pessoalmente, que seja), é certo que essa data já é marcante na vida de cada um daqueles, colegas ou alunos, cujo caminho cruzou o do sociólogo que se torna hoje presidente. E eu não devo ser a única destas testemunhas de antanho a colocar-me a mim próprio duas questões sem dúvida fúteis, mas dificilmente evitáveis. A primeira: já me teria ocorrido a idéia nos anos 60 de que Fernando Henrique Cardoso estava prometido para um "destino nacional"? A segunda: do pouco que sei dele, das conversas ou dos seminários dispersos em minha memória, posso tirar alguma indicação do homem de Estado que ele será?
À primeira questão, respondo não, e para minha vergonha, pois o carisma nascente do professor Cardoso não impedia em absoluto tal prognóstico. O que me desviava dele era um preconceito eminentemente francês: a certeza, não formulada, de que o corte entre a vida acadêmica e a vida política é tal, por princípio, que um intelectual notório tem sem dúvida o direito de aspirar ao "Collège de France", mas que ele certamente não está destinado a exercer um alto cargo político, notadamente a primeira magistratura. Desse modo, a partilha é clara: para os intelectuais, o trabalho sobre os conceitos; para os políticos, as "combinaziones"... Esse dogma, o destino de Fernando Henrique o desmente com estrondo: eis aí um homem que obteve as honras universitárias (inclusive, justamente, uma oferta para ensinar no "Collège de France") e que, além disso, acedeu ao mais alto cargo político. Com o distanciamento, parece-me também que Fernando Henrique sempre recusou, de fato, a partilha que acabo de evocar e que ele jamais separou seu trabalho acadêmico ou científico de sua finalidade e ressonância práticas. Esse "pragmatismo" espontâneo era tanto mais notável porque não era comandado por nenhuma sede de honras, por nenhuma ambição visível (vale dizer: medíocre). Esse traço se manteve em seguida. Como suspeitar da menor preocupação com a "carreira" em alguém que, por pelo menos duas vezes, declinou duas ofertas de prestígio que recebera no estrangeiro? Não porque ele se reservasse para Brasília (eram os tempos mais sombrios da ditadura), mas simplesmente, creio, porque os cargos oferecidos o teriam desviado demais do centro de interesse científico que sempre foi o seu, a saber, o Brasil. Tanto é verdade que o patriotismo do novo presidente é indissociável de sua carreira e sua vocação.
Eis então um intelectual no poder. Que comportamento se deve esperar dele? Não se pode evitar refletir sobre essa outra questão. Mas a sua formulação não é muito feliz, tanto o sentido de intelectual foi corrompido pelo uso "mediático" do termo. Mais ou menos a meia distância entre "guru" e "bela alma", este induz a imagens que se ajustam particularmente mal à personalidade de Fernando Henrique, e que nos levariam a exigir dele performances que ele pouco se preocupa em realizar. Esse conceito que se tornou frouxo pertence antes às categorizações pré-fabricadas e pouco adequadas para esclarecer a ação de um governo. Assim seria certamente vão pretender determinar em suas primeiras decisões se a "ética da responsabilidade" prevalece sobre a "da convicção". Para ter a chance de apreciar com equidade, sobretudo nos primeiros momentos, a difícil navegação que vai começar, os "intelectuais" fariam melhor se colocassem entre parênteses as classificações acadêmicas. Seria melhor que eles evitassem aplicar sumariamente as codificações que lhes são familiares. Desejam uma referência erudita? Nestes tempos, é melhor reler o retrato do "homem prudente" na "Ética" de Aristóteles que o do "filósofo-rei" de Platão.
Eu não chegaria, de maneira nenhuma, a ponto de referir-me a Maquiavel. Pois isso seria insinuar que Fernando Henrique Cardoso é homem de sacrificar suas convicções às exigências da habilidade. Ora, se o novo chefe de Estado mostrou que sabe praticar a política como arte do possível, ele igualmente mostrou ao menos ao longo de sua vida que existem princípios sobre os quais ele não transige, e concessões que a flexibilidade tática jamais justificaria. E isso ele o fez à sua maneira: com firmeza, mas sem barulho. Razão a mais para lhe fazer a honra mínima de não comparar a prudência com que agiu até aqui com oportunismo.
O mais rápido exame de seu "cursus" não basta para nos prevenir contra essa confusão? O que deveria impressionar no longo percurso que, hoje, desemboca no exercício do poder supremo é que ele está isento de qualquer corte e, mais particularmente, de qualquer palinódia ou renegação. Um ambicioso medíocre e com pressa de chegar a seu objetivo não caminha dessa forma: ele toma atalhos, não teme guinadas. E o oportunismo nada mais é do que esta decisão de princípio de recorrer, em qualquer circunstância, a todo tipo de expediente. Nada na conduta passada e mesmo na conduta recente do novo chefe de Estado autoriza a lhe conferir tal forma de cinismo. Levar em conta o jogo de forças em uma tática eleitoral é, apesar de tudo, algo completamente diferente de aproveitar, por princípio e continuamente, toda "oportunidade" que se ofereça.
Dir-se-á então que um discurso assim edulcorado pelas necessidades do jogo político não conserva mais grande coisa das convicções outrora professadas? Essa crítica me pareceria ainda impertinente. Além do fato de que um discurso político não poderia ser julgado separadamente da ação determinada da qual faz parte, nada indica, nas circunstâncias, que esse discurso marque uma reviravolta. O tempo, simplesmente, transcorreu. E, se é verdade que aquele que entra no Planalto deixou atrás de si (e eu não digo muito atrás de si) o protagonista de certos seminários paulistanos sobre "O Capital", talvez seja porque a passagem dos anos, sem impor a rejeição do discurso ideológico dos anos 60, exigiu de alguma forma uma decantação deste. Uma separação das análises que, hoje, envelheceriam (no mesmo sentido em que bastam duas ou três décadas para que o estilo de um escritor ou a interpretação de um ator apareçam como datadas) e objetivos que merecem, estes sim, ser reformulados em função do novo teatro de operações, e perseguidos por intermédio de novos recursos. Isso, Fernando Henrique não julgou conveniente dizê-lo expressamente: é a sua prática que tornava manifestos os reajustes que ele considerou útil operar. Eu não digo "autocríticas", pois a palavra seria absolutamente imprópria –seria este um erro pelo qual seria preciso bater no peito dizendo "mea culpa" apenas por ter sido filho do seu tempo? E, sobretudo, de tê-lo sido com uma tão constante lucidez?
Dessa lucidez em circunstâncias críticas (nos primeiríssimos meses de 1964), eu sou um daqueles que poderiam testemunhar pessoalmente, a tal ponto minhas lembranças são precisas. Basta-me dizer que, durante a minha vida, muito poucas pessoas me ensinaram como ele, naquelas horas conturbadas, que a lucidez dos "fortes" não implica o ceticismo e não desvia do engajamento. Falar mais sobre isso seria faltar com a discrição e o respeito em relação ao chefe de Estado. Se essas linhas caírem sob os seus olhos, ele já as achará, talvez, personalizadas demais. Neste caso, que ele me desculpe. Eu não sou o único, no exterior, a me regozijar com o fato de que agora não se pode mais pensar no Brasil sem evocar a personalidade, desde há muito marcante, de Fernando Henrique Cardoso. E este era o único modo que eu tinha de desejar-lhe boa sorte mostrando toda a minha sinceridade.

Tradução de Hélio Schwartsman

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