São Paulo, segunda-feira, 2 de janeiro de 1995
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Embarque imediato

PAUL VIRILIO
ESPECIAL PARA O "LE MONDE"

No frontão das salas de cinema dos anos 30, podia-se às vezes ler um slogan: "A Volta ao Mundo em 80 Minutos"... em princípio entre dois meios de transporte: os filmes de atualidades estavam posicionados como os hotéis de passagem, próximos e às vezes no interior das estações centrais. Luxo de "partir a toda velocidade", na expectativa de partir de verdade, o motor elétrico da rotativa de imagens dando a partida na máquina a vapor.
"O viajante de hoje pode dizer: 'Sou habitante da Terra', como ele diria: 'Sou habitante de Asnières'. Há viajantes que já nem mesmo sabem que viajam", observava um escritor. Ia-se ao cinema como se apanhava a correspondência, passava-se de um estado de movimento a outro sem se preocupar com o que isso significa, carregado, transportado, sem objetivo nem destino verdadeiro.
"O cinema", segundo Hitchcock, "é antes de tudo cadeiras com espectadores sentados" –os de um avião ou do velho "Hale's Tour" americano, sala de cinema em forma de vagão de ferrovia, ou ainda os assentos de couro dos conversíveis dos anos 50, estacionados diante da tela gigantesca de um drive-in, perto da estrada.
Pouco importa o lugar geográfico onde se encontram as cadeiras e os espectadores que nelas se sentam. Onde quer que estejam, em viagem ou em outra parte, eles estão ali para aguardar passivamente a chegada desse ritmo estranho da luz que fará vibrar suas retinas em uníssono com o aparelho de projeção, 24 vezes por segundo.
"O cinema é colocar um uniforme no olho", dizia Kafka. A máquina comanda e dirige o olhar, Marcel Pagnol explica isso em suas memórias: "Em um teatro, mil espectadores não podem se sentar todos no mesmo lugar e, então, podemos afirmar que nenhum entre eles vê a mesma peça (...) O cinema resolve o problema, já que o que cada espectador vê é exatamente a imagem que a câmera viu (...) Não há, portanto, mais mil espectadores (ou milhões, se reunirmos todas as salas), há apenas um que vê e ouve como a câmera e o microfone."
Totalitarismo
Com mais recuo, com mais distância, o cinema industrial não escapa à regra geral –onde há motor, há controle do movimento e, quanto mais aumenta a mobilidade, necessariamente deve aumentar mais o controle, até a automatização final.
Controle das redes de ferrovias ou do tráfego nas estradas, controle dos corpos em movimento desde a origem da cronofotografia com Etienne-Jules Marey e seu assistente Georges Demeny, membro da comissão do manual de infantaria, que demonstrará em 1904, com o apoio de filmes, a utilidade do cinema na dosagem dos esforços do combatente e representará um importante papel na formação física do Exército francês às vésperas das grandes manobras da Primeira Guerra Mundial.
Mas também, logística da percepção das imagens e dos sons, "trens-cinemas" de propaganda da revolução soviética, conquista do Oeste americano, "total mobil-machung" hitleriana... De Eisenstein a John Ford ou Leni Riefensthal, as grandes telas do cinema industrial foram durante muito tempo as telas de controle da dinâmica das massas, o instrumento sonhado por todos os totalitarismos.
Interatividade
Hoje, quando os documentários e os filmes de atualidades quase desapareceram das telas das salas de cinema, nunca as câmeras exploraram tanto, filmaram tanto, no ritmo da informação-mundo, ou mais, da informação-universo.
Sabemos que as técnicas engendram umas as outras: o filme sonoro criado em 1926 pela Warner Brothers era apenas um subproduto industrial da tecnologia do telefone e do rádio, com o registro eletrônico do som e seu processo de reprodução.
Ele pressagiava o "see it now" da TV ao vivo e, em breve, a interatividade instantânea das infovias, aguardando a precipitação em direção a outras origens, para além da desaparição das telas, em novos espaços virtuais –cyberespaço onde "não será necessário, para viajar, arrastar um corpo como este que possuímos no universo físico" (1).
No fim da linha, o querido velho projetor do cinema-espetáculo não desloca mais muita gente, vitimado certamente pelas origens técnicas demasiado rudimentares. O ancestral da câmera dos irmãos Lumière, o fuzil cronofotográfico de Marey, que permitia focalizar e fotografar objetos se deslocando no espaço, não descendia em linha direta da metralhadora a manivela do coronel Gatling e do colt a tambor patenteado em 1832?
Com uma obstinação exemplar, Hollywood aliás nunca deixou de celebrar a união bárbara entre a arma automática e a foto automática. Como se não pudesse se livrar de sua inspiração assassina, a divisa do onipotente cinema americano continua a ser: "Quando ouço a palavra cultura, saco meu revólver!" (2)

(1) Eric Gullichsen citado por Howard Reingold. "A Realidade Virtual". Ed. Dunod, 1993.
(2) Fórmula atribuída ao ex-jornalista e roteirista Joseph Goebbels, chefe do cinema hitlerista, ministro da Propaganda e da Informação.

Tradução de Cássio Starling Carlos

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