São Paulo, segunda-feira, 2 de janeiro de 1995
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Como um coração batendo

PIERRE HENRY
ESPECIAL PARA O "LE MONDE"

O cinema é necessário para mim. Esta necessidade pode ser descrita em três atos. O primeiro ato tem como cenário o Conservatório Nacional Superior de Música de Paris. Ele se localizava à rua Madrid, bem perto da cinemateca da avenida Messina. Eu não concluí nenhum curso no conservatório. Eu tinha 15, 16 anos. A música era muito acadêmica na época, o teatro não era muito interessante.
Em lugar algum eu aprendi os ritmos, os choques, as respirações. O cinema guardava a emoção que eu buscava. Elementos distantes, outros próximos, uma pulsação, um começo... sobretudo um começo. Eu adorava os começos dos filmes. Eu aprendi talvez com eles o sentido dos esboços poéticos na música. Há o começo. Há a palavra FIM. E, entre os dois, um roteiro a ser posto em imagens e música. O cinema é a pedagogia desta dramaturgia abstrata. Um coração batendo.
O segundo ato começa dois anos antes de minha primeira obra concreta. 1948. Eu tinha composto a música de "Voir l'Invisible", de Jean-Claude Sée, exclusivamente com percussões. A percussão era minha especialidade. O filme era uma homenagem ao cinema das origens, com combinações de imagens complicadas, acelerações e desacelerações. Com esta composição pronta, fui me encontrar com Pierre Schaeffer no Estúdio Experimental do Rádio. Ele me disse: "Está bom mas poderia ficar melhor". E reproduziu o disco numa velocidade ligeiramente acelerada.

Imagens do real
Como compositor, o real nunca foi meu forte. Entretanto, meu interesse caminha mais em direção às imagens do real, ao documentário como o concebem Alain Resnais e Chris Marker. As opções plásticas, estéticas, as escolhas de enquadramento ali são mais sensíveis que na ficção. Em "Música Sem Título", que compus em 1950, "via-se" a guerra, as férias, o papa, os matadouros, o erotismo. Ela foi a trilha sonora de um outro filme de Jean-Claude Sée, "Actualité 666". O seis é o algarismo da Besta. Esta foi minha primeira aproximação do Apocalipse (1).
Ato três: eu descobri a pintura por intermédio do cinema. Fiz a trilha sonora de filmes sobre Da Vinci, Calder, os novos realistas, o escultor Claude Viseux. O cinema recorta e reestrutura de maneira dramática e rítmica as artes plásticas. Podemos aprender a amar a pintura por intermédio do cinema. E a poesia. "Sans Soleil", de Chris Marker, é acompanhado por um texto enorme. O cinema é também o meio de fazer escutar uma palavra.
Bem mais que a música, ou que as artes plásticas, o cinema foi o lugar das vanguardas, da modernidade. "O Cão Andaluz", de Bu¤uel, "Le Ballet Mécanique", de Léger, são experiências no sentido particular da palavra. Norman Mac Laren fazia, ele próprio, seus sons, desenhava seus filmes. Eu o conheci nos anos 50. Ele era um artista plástico saltitante e cheio de humor. Seus filmes são composições. Como os de Tati ou de Bresson.
Entrar em uma sala de cinema é, para mim, o exato contrário de uma diversão. A angústia toma conta de mim. Deparo-me com as batidas de meu coração. E depois, a duração do filme se impõe, e as idéias me assaltam. O último filme de Alain Cavalier, "Libera-me", história extraordinária de resistência mítica em um país imaginário, me mostrou que a imagem animada podia dar às coisas uma presença mais forte que se as víssemos concretamente.
Na obra que preparo, a partir das "Fábulas" de La Fontaine, cheguei a sons amplificados, o equivalente dos rostos em close up, depois de todos esses anos, quando quis criar músicas totais, grandes polifonias. A música concreta, a que eu faço, utiliza o suporte da fita magnética, pratica a montagem, a mixagem, utiliza as panorâmicas e os primeiros planos: ela é, com toda evidência, parente próxima do cinema.
Ela não teria existido sem ele. Se eu tento colocar um pouco de vida em minhas musiquetas, é esta vida transcendida, e mais real que a realidade que o cinema mostra.
Adoro as salas pequenas. Detesto o som Dolby, os alto-falantes no fundo, a diminuição da velocidade das imagens nas telas gigantescas. Adoro quando o som sai da tela, um som fraco, saindo de uma tela pequena, na qual nos é contada uma história pequena. Tenho necessidade de acreditar nisso. Quando entro de verdade em um filme, sinto uma vibração, uma harmonia geral que nem os concertos, nem o teatro, me trazem. O cinema mexe com você.
A tela é uma aventura. Há algo por trás dela. A tela me deu o gosto pelo frontal. O cinema é um olhar. Minha música, uma escuta-olhar.

(1)"L'Apocalipse de Jean", para recitante e fita magnética, composta em 1968.

Tradução de Cássio Starling Carlos

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