São Paulo, segunda-feira, 2 de janeiro de 1995
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Se eu fosse o cinema;Trégua

WOODY ALLEN
ESPECIAL PARA O "LE MONDE"

Se eu fosse o cinema
"Em que o cinema afetou nosso século?" Isso não é tema para um ensaio, mas material para um livro, que seria, acredito, longo, enfadonho e altamente especulativo. Na verdade, se eu fosse o cinema, gostaria de estar o mais dissociado possível deste século. Os últimos cem anos foram bastante horríveis: cheios de duplicidades, de genocídios e de sangue. Quem então poderia se orgulhar de ter exercido sobre ele alguma influência?
Se eu fosse o cinema, não ia querer ter a menor responsabilidade sobre o século que agora se completa. Eu diria ainda que o século teria sido melhor se eu tivesse efetivamente colocado algum peso em sua balança, mas isso não passaria de pura conjectura.
Na verdade, poderíamos fazer uma provocação com o cinema: ele glorificou a guerra e criou uma imagem romântica dos gângsteres, enunciou soluções simplistas e catequeses piedosas, criou falsas esperanças e transformou em ídolos a riqueza, a propriedade e a beleza física insípida, além de ter proposto muitos outros objetivos irreais ou indignos.
Faça um serviço ao cinema: não o julgue responsável, em nenhuma medida, pelas décadas de derrota e de carnificina planetárias. Tenho certeza que o cinema não gostaria de ter que se defender.
Trégua
Mas "em que o cinema me afetou ao longo do último século?" –essa pergunta me cai melhor. Não que o discurso seja mais nobre, mas é simplesmente menos brutal. Porque, se o cinema é talvez culpado por todas ou algumas das perversidades mencionadas acima, seja lá o que ele tenha feito, o fez com muito charme e emoção.
Crescendo num bairro modesto, mas próximo a pé de uma dúzia de salas de cinema, havia lugares escuros e quentes no inverno, frescos no verão, distantes do Sol ofuscante (antes tido como saudável e agora reconhecido como cancerígeno) e longe também do tráfego barulhento onde, por alguns centavos, se podia de repente e voluntariamente fugir da realidade.
É preciso reconhecer: detestamos todos a realidade. Às vezes temos orgulho demais para reconhecer isso, mas, de manhãzinha, quando o céu de nossos pensamentos ameaça se cobrir, nós nos encolhemos de medo e de desprezo diante da besta da verdade. Pior, quando uma dose de realidade nos bate na cara durante o dia, nós sofremos.
Além disso, quando falamos da realidade, falamos do quê? Daquilo que dura, do que resta quando os acontecimentos insignificantes e transitórios da juventude e da família são, no melhor dos casos, lembranças. Enfim, a moral, a velhice, a doença, a miséria, a morte, os mil outros choques naturais que constituem a tela de fundo diante da qual nós nos exibimos e nos atormentamos em nossos jeans de marca.
Em consequência, não pensar na realidade, nem que só por 90 minutos, é uma brisa tão bem-vinda que nos permite, um pouco resfrescados, continuar o combate no atoleiro fatal da natureza. É verdade que hoje em dia essa pequena trégua custa US$ 8 e não mais alguns centavos, mas a dose, idêntica, continua lá. Com certeza, é o negócio do século.
Permite que se saia do mundo real de papai e mamãe, que se atiram, aos berros, insultos um na cara do outro, dos resultados de uma radiografia ou de um exame de sangue ou da primeira página do jornal consagrada à última bomba explodida por terroristas, ao último avião espatifado, à última fome ou ao último terremoto, e que se entre em uma sala escura, com um pacote de pipoca na mão.
E eis que surgem Fred Astaire, Humphrey Bogart, Jack Nicholson, Michelle Pfeiffer, Marlon Brando, Barbra Streisand ou qualquer outro personagem abençoado, perfeito, divino, que faz aquilo que ele ou ela fazem de melhor.
Estamos de repente nas mãos de roteiristas soberbos, diretores inovadores, figurinistas eméritos, cenógrafos talentosos, coreógrafos espantosos (se nos refugiamos no bom cinema). Deixamos um ambiente terno para nos reencontrar entre piratas, ou caubóis, ou milionários em suas mansões, ou homens e mulheres sempre prontos para uma réplica brilhante.
Todos lindos, fortes e, mais importante, todos vencedores. Saímos revigorados dessa trégua com o mundo real, conseguimos reunir forças suficientes para enfrentar o que resta do dia. Ao menos, esse é meu caso. É agradável, de tempos em tempos, tentar imaginar o que teria sido a existência se Deus tivesse conseguido um orçamento e roteiristas melhores.

Tradução de Fernanda Scalzo

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