São Paulo, segunda-feira, 9 de janeiro de 1995
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Globo faz propaganda da imigração

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

A convite do governo japonês, uma equipe da Rede Globo esteve no Japão a pesquisar o cotidiano dos quase 200 mil brasileiros residentes naquele país. A estadia de quase um mês da jornalista Glória Maria, do cinegrafista Fernando Calixto, e da diretora de produção Teresa Cavalleiro produziu dois episódios do "Globo Repórter".
Um sobre diversas experiências de pessoas que vão trabalhar como operários para juntar dinheiro e voltar. Outro, sobre uns poucos que se tornaram astros da indústria cultural japonesa. O material é rico e ambíguo na sua abordagem da experiência de desterritorialização de brasileiros, na sua maioria niseis, no país de seus ancestrais.
Os dois programas têm um inconfundível ar de propaganda da imigração. Lembram de leve os folhetos produzidos no segundo império para estimular italianos a vir para o Brasil -terras abundantes, condições para vencer. Os brasileiros no Japão são bem vistos como trabalhadores esforçados, dispostos a qualquer hora extra para ganhar mais.
O trabalho menos qualificado do que sua formação não os avilta porque os salários são dignos. Um casal economiza US$ 2.500 por mês, já comprou um apartamento no Brasil. Há redes de solidariedade e cuidados especiais nas escolas e hospitais. Mulheres brasileiras fazem sucesso na mídia como cantoras, modelos, diretoras de TV. Zico é herói nacional.
Em certo sentido, o "Globo Repórter" quase inverte os sinais e ao invés de pátria sem perspectiva, vende a imagem de um Brasil que conquista e seduz os japoneses. Porém não pense que tudo são rosas. Mais, esteja preparado para enfrentar um desafio emocionalmente muito duro e marcante.
O documentário tem também uma certa função prestadora de serviço na preparação de viajantes. É necessária muita autodisciplina, respeito à hierarquia e aos horários. E principalmente, há que enfrentar um sentimento para o qual a língua japonesa -como muitas outras- não tem tradução, mas que nossa herança portuguesa preza muito: a saudade. Não podiam faltar muitas lágrimas em cenas de aeroporto. Nem os homens se acanham, e choram.
A desterritorialização é a "experiência do limite" como bem definiu a freira brasileira em Tóquio. Os fluxos de gente que vão fazer trabalho sazonal para convenientemente voltarem a seus lares, dispensados ao final, não são indolores como os fluxos transnacionais de informação e capital. A Globo não mencionou, mas existe todo um comércio ilegal de fitas de novela, disputadíssimas entre os nostálgicos.
A televisão está profundamente implicada nesses movimentos opostos. Ao cumprir papel de vídeo institucional, propagandeou a possibilidade de imigração. Ao fornecer imagens de parentes separados, a televisão funcionou como intermediária de relações familiares. Ao difundir imagens da exibição desse material da televisão dentro da televisão, ela compartilha o papel de correio eletrônico com o público. Se impõe como força virtual, capaz de vencer as distâncias de tempo e espaço que os trabalhadores dessa diáspora voluntária não conseguem transcender.

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