São Paulo, sábado, 14 de janeiro de 1995
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Tom é plantado à sombra de sua sumaúma

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Dia 25 deste mês Tom Jobim estaria completando 68 anos. Acho que era nisto que pensava a maioria dos que, terça-feira, dia 10, nos reuníamos no Jardim Botânico para inaugurar placa com seu nome.
Eu tinha estado com ele precisamente ali, na companhia de outros dois Antonios, Antonio Candido e Antonio Houaiss, quando éramos filmados para um vídeo, do qual resultou também um livro da editora Relume-Dumará, intitulado "Três Antonios e um Jobim". Eu sei que os dois brilhantes Antonios que comigo formaram a trinca concordam quando digo que a estrela do vídeo e do livro foi o mais alto de nós quatro, o mais alegre, o mais jovem.
A singela placa inaugurada terça-feira diz apenas que é uma homenagem do Ibama a Tom Jobim, "maestro soberano". A caracterização de Tom como maestro soberano é por sua vez uma homenagem ao Chico de "Paratodos". O importante é que a placa fica no meio da aléia principal das palmeiras imperiais do Jardim Botânico, ao pé da gigantesca sumaúma. O tronco enorme dessa árvore de nome tupi sobe de sapopembas tão caprichadas que parecem feitas antes, para garantir os alicerces da árvore que vai crescer um despropósito.
Tom costumava fazer longas considerações sobre a sumaúma. Aliás, no Jardim Botânico, falante como sempre, Tom ficava meio vegetalizado, se assim posso me exprimir. Ao chegar perto de uma árvore favorita, adotava um dialeto e uma postura destinados mais a interpretar do que a descrever a árvore. O nome sumaúma, por exemplo, ele o enroscava na boca como quem está chupando um caramelo.
A terça-feira aqui no Rio foi um dia lindíssimo, mas de 40º C de calor. Um calor de entorpecer até os riachinhos que deságuam no rio dos Macacos, o qual vai, por baixo da rua, desaguar na lagoa Rodrigo de Freitas.
Mas havia muita gente, entre autoridades e povo, lembrando Tom ali, sobretudo quando a banda do Corpo de Bombeiros tocava músicas dele. Lá estive com o organizador da festa triste, mas vital, o diretor do Jardim Botânico, Wanderbilt Duarte de Barros, meu amigo, amigo de Tom, com Aspásia Camargo, que representava o ministro Gustavo Krause, com Alberico Campana, da Churrascaria Plataforma.
Lá estava Helena, irmã de Tom. E, discreta, triste, Ana Lontra Jobim, que foi chamada a descerrar a placa que coloca para sempre ao pé da sua sumaúma o maestro soberano.
Desde que morreu Tom Jobim eu tenho sentido, e sinto no que têm escrito amigos comuns como João Ubaldo Ribeiro, como Zuenir Ventura, como Ruy Castro, uma certa dificuldade –como tem sido a minha– de evocá-lo satisfatoriamente. Tom tinha uma qualidade de fantasia, de "whimsey", difícil de captar. Acho que ele jamais foi visto objetivamente irritado com alguém, alguma coisa, argumentando contra.
Sua tendência era quebrar a realidade, seu gênio era partir o tempo todo para a cisma, o "nonsense". Pão-pão, queijo-queijo ou preto no branco sumiam logo da mesa em que ele se sentasse. A irrealidade criadora, leve, tomava o lugar da lógica que mesmo num bar tende a nos escravizar.
No meio de alguma conversa mais insistente, ou de pessoas que exigem respostas claras e contundentes, ele gostava muito de apelar para os versos. Citava de repente um nome de poesia, ou recitava. Em português ou em inglês. Bloqueava o caminho de qualquer conversa chata com a pedra de Drummond. Ou adorava degustar e comentar as primeiras linhas do poema de T.S. Eliot: "April is the cruellest month". Por que será abril o mais cruel dos meses? Sem dúvida porque vem depois das águas de março.
Em 1987 morreu nos Estados Unidos um artista que, como Tom Jobim, foi de necrológio difícil. Cantava com um filete de voz que era um filete de água pura. Dançava e sapateava –mesmo encartolado, de casaca e sapatos de verniz– como se tivesse aprendido o truque dos saltos pela receita de Nijinski, que era subir do chão com toda a força e descer bem devagarinho.
Chamava-se Fred Astaire e consolidou sua fama, leve e fina como a de Tom, a partir de 1933 em "Voando para o Rio", filme em que apareceu pela primeira vez dançando ao lado de Ginger Rogers. Fred Astaire ficou como um sonho americano de graça e espiritualidade, que nunca se materializou de novo. Temo que Tom Jobim, em essência, continue nos escapando e fique para sempre inatingível.
Restam as músicas, graças a Deus, os filmes e os livros, mas a capacidade de saltar da realidade de repente e só voltar ao chão bem devagar, essa infelizmente não grava, não filma, não imprime. É verdade que ficam, também, as mansas piadas. Terça-feira, na plena badalação do Jardim Botânico, julguei ouvir de repente a voz de Tom, me dizendo num cicio de folha: "Não precisava ter tanta gente pisando na grama".
Finalmente, quero sugerir aqui um dos possíveis meios de preservar a memória de Tom Jobim. Eu pediria a algum dos seus tantos amigos pintores e cartunistas que tentasse guardar para os vindouros o mapa do Rio de Janeiro de Tom, fincado no Jardim Botânico e deitando raízes na direção da Plataforma e da Cobal do Leblon, seus refúgios prediletos dos últimos tempos, e dos bares e boates do passado, em que ele primeiro apareceu ao lado de Vinicius, antes de se cruzarem os dois como placa, respectivamente, de avenida e rua, em Ipanema.
O que me deu a idéia foi um antigo mapa de Nova York desenhado por Saul Steinberg. É a ilha de Manhattan, cercada por seus três rios e dividida em condados paradisíacos que se chamam Bordeaux, Bourgogne, Slivovitz, Dom Pérignon.

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