São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1995
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Assedie-me, por favor

MOACYR SCLIAR
– VOCÊ ESCREVERIA UMA CARTA PARA MIM?

Claro – disse o Fuinha. Não era a primeira vez que o analfabeto Valtão lhe fazia o pedido. E ele não costumava recusar: gostava de ajudar os outros, mas, mais que isto, não se atreveria a contrariar o Valtão, homem forte e truculento, dado a ataques de fúria. Pegou um pedaço de papel e um toco de lápis.
– Vamos lá, Valtão. Para quem é a carta? Para a sua mãe?
– Não. – Valtão, sorridente. – É uma carta de amor.
– Eu não sabia que você tinha namorada.
– Não tenho. Mas isto não impede que eu escreva uma carta de amor, impede?
– Claro que não – apressou-se a concordar o Fuinha. – Você pode escrever mensagens de amor para quem você quiser. Para quem é a carta?
– É para essa moça de Belo Horizonte que foi condenada por dar duro num cara. Esse negócio de assédio sexual, você não ouviu falar? Está na moda. Fizeram até um filme sobre esse assunto, um filme americano. É a história de um sujeito que é perseguido pela diretora da empresa dele.
– E aí? – Fuinha subitamente interessado. – O que é que o cara faz? Passa a mão na grana dela?
– Não. O cara nega fogo. Ele fica perturbado com o assédio sexual.
– Que coisa – Fuinha coçou a cabeça, perplexo. – Assédio sexual. Que coisa.
– Bom, mas vamos à carta. Eu quero que você comece mais ou menos assim: "Prezada senhorita. Eu sei o que é amar sem ser amado, eu sei o que é pensar na solidão..."
Você não está na solidão – observou Fuinha.
– Claro que estou – retrucou o Valtão. – Eu me sinto solitário, cara. Todas as noites eu suspiro por uma mulher. Eu sonho, cara, que estou sendo assediado. E é isto que eu quero que você diga: que eu estou à procura da moça dos meus sonhos, e que ela é forte candidata ao posto.
Fuinha mirava-o, sem dizer nada.
– Por que você está me olhando desse jeito? – Valtão, irritado. – Você nunca presenciou o nascimento de uma paixão súbita?
Fuinha calado.
– Fale, cara. Diga logo o que você esta pensando.
– Valtão...
– Fale.
– A moça, pelo que sei, é oficial de justiça. Será que você não está atrás de um pistolão?
– Que é isto, Fuinha? Você duvida da minha sinceridade? Ah, mas eu sei o que você está pensando. Você acha que eu não tenho chance nenhuma: um sujeito medonho, com uma cicatriz no meio da cara, quer ser assediado? Só que você se engana, Fuinha. O rapaz que ela assediou deu uma entrevista dizendo que nem se achava bonito. Quer dizer: beleza não é tudo. A paixão é cega, meu amigo. Bem, termine a carta.
Fuinha tratou de obedecer. Não estava a fim de levar uma surra. Além disto, uma carta bem escrita até poderia dar resultado. Só tinha uma curiosidade: queria ver como a moça entraria na cadeia para assediar o Valtão. Onde ele estava justamente por causa disso: por assédio sexual.

A partir de hoje, a coluna "Boletim de Ocorrência" passa a ser publicada às quintas-feiras neste espaço.

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