São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1995
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A ARTE DO EXCESSO

RICARDO ARAÚJO
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE MADRI

O artista plástico Fernando Botero, que nasceu em Medellín em 1932, descende de um aventureiro italiano que foi para a Colômbia à caça de ouro no século 18. Ao realizar a rota oposta à de seu antepassado, Botero encontrou na Itália o "seu ouro": a pintura do Renascimento.
Foi a partir de sua leitura das obras italianas do século 14 e 15, que ele pôde desenvolver um dos trabalhos mais singulares da arte atual. Nos renascentistas, o colombiano descobriu um mundo de desmesura e excesso, que, mesclado às suas fontes da cultura pré-colombiana e da arte popular da América Latina, originou um bem-humorado reino de "gorduchas" e "gorduchos", ao mesmo tempo cândidos e perversos.
Com eles, Botero passou a enfrentar uma dura disputa contra o "emagrecimento" da arte contemporânea. E quanto mais os críticos pediam minimalismo e conceito, mais Botero engordava suas figuras e enriquecia seus temas, enchendo galerias, museus e praças públicas com Mona Lisas meninas, prostitutas peladíssimas, cabarés engordurados repletos de obesos –até tornar-se um dos mais famosos e requisitados artistas latino-americanos, além de um dos mais bem sucedidos financeiramente.
Em uma de suas recentes exposições, quando milhares de pessoas foram ver 21 de suas esculturas expostas numa faixa de 2 km no Paseo de Recoletos –uma avenida em Madri (Espanha)–, um grupo de artistas fez um veemente protesto contra aquela "tirania da gordura" empunhando uma magérrima figura do escultor italiano Alberto Giacometti.
O protesto não perturbou Botero, que está firmemente decidido a contrapor ao puritanismo nas artes a exuberância, o exagero e a sensualidade não só de seus gordos mas da própria pintura –justamente aquela que se originou no Quatrocento italiano.
Dois meses por ano, Botero passa em seu apartamento em Nova York, outros seis ele vive em Paris. O restante do tempo, ele divide com viagens a Bogotá (Colômbia), ao México e a outras capitais do mundo. Foi em uma de suas visitas a Madri que o artista colombiano falou à Folha, para a qual fez um desenho com exclusividade (veja nesta página).

Folha - Contam que seu início de carreira foi muito duro, perto da miséria, e que o sr. precisou trabalhar como copista em Madri. É verdade?
Fernando Botero - Sim. Minha carreira já é bastante longa. Comecei a pintar em Medellín, Colômbia, lugar onde nasci, há 45 anos atrás. Eu vim para Madri muito jovem, com 19 anos e sem nenhum dinheiro. Como meus recursos eram muito limitados, eu vivia em uma pensão em frente ao Museu do Prado, onde tinha um quartinho que ficava bem detrás da cozinha, de tal forma que toda vez que se preparava o almoço, ficava cheio de fumaça.
Nesta época, pela manhã, muito cedo, eu ia desenhar no Prado. Depois das nove, eu ia para a Academia de San Fernando e então, à tarde, eu retornava ao Prado para fazer cópias. Fazia isto para aprender a pintar, para ganhar experiência, mas também vendia estas cópias e, com isto, ganhava algum dinheiro para viver. Passei todo um inverno assim, que foi muito interessante, mas era uma outra Espanha e eu era muito jovem. Foi uma coisa muito importante. De Madri fui para Florença, onde passei dois anos fazendo afrescos.
Folha - Quais os pintores que mais o impressionavam nessa época?
Botero - Piero della Francesca, Paolo Uccello, Giotto... Em Florença tive oportunidade de conhecer bem a pintura do Renascimento, a pintura do século 14 e sobretudo do século 15 com todos os seus grandes mestres. Todos estes pintores demonstraram grande interesse pelo volume. Eles cultivavam o caráter plástico e volumétrico e influenciaram muito meu trabalho.
Folha - Depois de Florença, o sr. continuou sua carreira em Nova York, onde predominava o interesse pela pintura abstrata. Como o sr. se relacionava com o ambiente artístico da cidade?
Botero - Em Nova York, a crítica era realmente muito favorável à arte abstrata. E eu vinha tomando em toda minha vida de artista uma atitude muito independente, não seguindo as correntes, as tendências da moda, mas, sim, fazendo a pintura como eu creio que ela deve ser, como eu a sinto.
É claro que esta atitude provocou todo tipo de resistências. Mas insisti em meu ponto de vista, mesmo contra a corrente, porque estou convencido de que a arte é uma expressão muito pessoal do que o artista tem dentro de si, e que cada um tem que buscar o frescor e a originalidade interiores. Assim, consegui fazer uma obra que atualmente tem uma grande aceitação.
Mas deve-se dizer que minha obra foi feita contra todos os cânones, contra todo o mundo, pois diziam que a arte era uma coisa, e eu fazia outra, de forma completamente oposta ao que eles chamavam de arte atual.
Folha - A grande mudança em sua carreira se deu quando o sr. conheceu a vice-diretora do Museu de Arte Moderna de Nova York, Dorothy Muller. Poderia falar sobre este encontro?
Botero - Foi um encontro muito afortunado porque eu estava passando muitas dificuldade em Nova York e com poucas chances de mostrar meu trabalho. Foi uma casualidade, porque Dorothy Muller foi visitar o estúdio de um pintor que estava muito perto do meu.
Este pintor, que era meu amigo, disse a Dorothy Muller que perto dali vivia um pintor colombiano que estava trabalhando muito. E pediu a ela que fosse até meu estúdio. Tão logo abri a porta, ela viu meu quadro "Mona Lisa de 12 anos" que estava de frente para a entrada e, então, disse: "Este quadro é para o Museu de Arte Moderna de Nova York". Assim, abruptamente.
E, de fato, o quadro está no Museu de Arte Moderna. Para mim, este foi o ponto de partida para um certo êxito, o reconhecimento, pois ter um quadro de grandes dimensões no Museu de Arte de Nova York é uma coisa importante.
Folha - Parece que o sr. é sobretudo um autodidata.
Botero - Sim, é verdade. Em primeiro lugar, porque vim de uma região da Colômbia em que não existiam museus e onde não havia uma tradição pictórica. Portanto, coloquei para mim mesmo o seguinte problema "o que é fazer arte?".
Comecei a tentar solucionar esta questão eu mesmo e, posteriormente, continuei desenvolvendo minhas idéias graças ao contato com os museus, através de minha experiência como pintor. Fui, então, solucionando o problema de como ser efetivamente mais plástico. Cheguei a este ponto a partir de um desenvolvimento de minha personalidade, meu modo de ver e sentir as coisas. Eu precisei fazer minha própria teoria, ou melhor, refletir sobre a melhor forma de fazer meu trabalho.
Folha - O que existe do imaginário colombiano ou latino-americano em seu trabalho?
Botero - Nós somos de um continente que possui muitas possibilidades temáticas. Há muita cor, muita magia, muita poesia em toda a realidade da América Latina. Portanto, este é um universo que se presta muito para ser pintado.
Existe um tipo de pintura que pode ser efetivada com elementos bem limitados. É o caso de Cézanne. Algumas maçãs sobre uma mesa tornam-se para este pintor um tema central e, daí, surge uma pintura muito interessante, muito importante. Mas também pode-se fazer uma pintura com um grande tema, com uma grande história. É o caso do Renascimento. Muito bem, no caso da América Latina eu me pergunto: se o tema está aí, por que não usá-lo?
Folha - A arte popular não participa desta sua "releitura" do Renascimento a partir da cultura latino-americana?
Botero - Sim. Em meu trabalho há uma influência italiana, pois vivi lá e esta pintura me interessa muito. Há ainda influências da arte espanhola: Velázquez e Goya me interessam muito. E há também uma influência da arte pré-colombiana e da arte popular.
No contato com o público, o importante, o que surge primeiro, é o estilo individual do artista –por exemplo, quando uma pessoa pára diante de um quadro ou de uma escultura que fiz, e pensa antecipadamente: "isto é um Botero". Mas, depois que observa a obra com mais cuidado, vai refletir "este pintor ama a pintura italiana, ama a pintura espanhola, a arte pré-colombiana etc..." O importante é que em uma primeira impressão o nome do artista surja imediatamente, mas é claro que a obra é uma mescla de várias coisas.

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