São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1995
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A ARTE DO EXCESSO

RICARDO ARAÚJO

A pintura já dedicou cem anos à arte abstrata e não se pode mais ficar estacionado aí; a história da pintura é a história de pessoas que vêem as coisas de forma distinta umas das outras

Folha - Seu trabalho é francamente figurativo. O que o sr. pensa da arte abstrata?
Botero - A arte abstrata foi uma experiência interessante. Houve uma certa evolução no sentido de uma simplificação da pintura. Houve, inclusive, uma teoria que chegou a propôr que "menos era mais". Depois, tomou-se isso como uma doutrina, como uma fé, como uma coisa imprescindível. Então, entramos em uma simplificação progressiva até chegarmos ao minimalismo e à arte conceitual. Ou seja, foi-se eliminando coisas próprias da pintura.
Foi uma proposta interessante, mas não se pode perpetuar este procedimento. Já se dedicou cem anos a este tipo de pintura, à evolução deste sentimento abstracionista. A pintura não pode ficar estacionada aí a vida inteira, ela tem que seguir adiante, fazer outras coisas. Está bem: foi uma boa experiência e mais nada. Não creio que este tipo de arte satisfaça todas as necessidades espirituais do homem. A arte deve ter um equilíbrio entre os valores plásticos.
Acredito que o futuro da arte está na expressão individual de muitos homens, como tem sido sempre na história da pintura: a história da pintura é a história de pessoas que vêem o sentido das coisas de forma distinta umas das outras.
Folha - O que o sr. tem a dizer sobre as experiências de Lucien Freud, Francis Bacon, que também trabalham a figura?
Botero - Penso os artistas de um ponto de vista panorâmico, dentro da grande tradição da história da arte. E, deste ponto de vista, a atualidade para mim é insignificante. Vejo a arte não pelo que foi feito nos últimos dez ou 15 anos. Isto para mim não tem nenhum interesse, comparado com a arte como eu a concebo.
Folha - A literatura exerce alguma influência em seu trabalho? Por exemplo: existe alguma relação entre sua obra e a de García Márquez?
Botero - Entre a pintura e a literatura não há uma forma de relação real. Ou seja, o que ocorre é que o tema de García Márquez é a Colômbia e a América Latina. O meu também é. Não há uma relação direta, mas pode-se dizer que há uma certa desmesura na obra de García Márquez como também há na minha.
Contudo, se alguém observar meus livros, meus catálogos, perceberá que esta desmesura existia em meu trabalho dez anos antes de existir García Márquez e seu livro "Cem Anos de Solidão". Ou seja, dez anos antes de García Márquez, eu já tinha pensado na desmesura e ela estava presente em meus trabalhos.
Folha - Suas esculturas monumentais no Paseo de Recoletos, em Madri (perto do Museu do Prado) agradaram muita gente, mas também desagradaram alguns. Um grupo de artistas plásticos de Madri posou em frente a suas gordas esculturas com cartazes que reproduziam uma figura quase esquelética feita pelo escultor italiano Alberto Giacometti. O que o sr. achou do protesto?
Botero - Toda arte que está viva produz controvérsias. É impossível uma arte que ponha todo mundo de acordo sobre sua importância. Isto faz parte do ser artista. E, mesmo assim, eu acredito que a manifestação se saiu muito bem. Eu acredito que todos devem manifestar suas opiniões e, inclusive, protestar. E me pareceu muito simpático, muito sutil, muito divertido o fato de desfilarem com cartazes de Giacometti.
Mas, por outro lado, também estou contente que a maior parte do público de Madri tenha aceito meu trabalho com muito entusiasmo. E o fato de que algumas pessoas protestem não lhe tira o valor, mas dá a ele um sobrevalor enorme. Milhares de pessoas foram ver estas esculturas. Multidões. Esta é uma experiência diferente.
Eu nunca vi uma reação massiva como a desta exposição. É formidável, é uma coisa flagrantemente revolucionária: uma união entre público e arte, nesta medida. Portanto, o protesto não me molestou em absoluto. Ao contrário, me agradou e muito.
Folha - O sr. acha que a estilização da desmesura e da obesidade em sua obra é uma reação ao "minimalismo" das artes plásticas contemporâneas?
Botero - Bem, eu me interessei pela pintura italiana do século 15, que é muito volumétrica. Para utilizar o termo que agrada as pessoas, são figuras "gordas". Em Masaccio e Paolo Uccello as figuras são gordas, são cheias, redondas. Eu percebi que este volume tinha uma certa sensualidade, uma certa plasticidade e que precisava explorá-las.
A arte contemporânea, por ser uma arte muito plana e pouco volumétrica, não explorou quase nada daquela pintura. Portanto, este era um elemento que estava ali, estava completamente descuidado e me atraía muito. E como elegi estes volumes para trabalhar, passaram a fazer parte do meu estilo.
Folha - Por que em suas esculturas o sr. explora sobretudo temas mais clássicos e menos cotidianos?
Botero - O tema, na arte da escultura, é muito limitado. Sempre se trabalha sobre muito pouco. Isto é o que é interessante: fazer algo distinto a partir do mesmo. O tema obrigatório da escultura é sempre o nu ou um animal. Também há figuras vestidas, mas este já é um tema mais difícil de encontrar na história da arte, principalmente com vestuário contemporâneo.
Eu enfrentei os distintos problemas tirados destes poucos temas possíveis da escultura: o nu, os animais, a figura contemporânea vestida. São limitadíssimos os temas e eu me propus trabalhar cada um deles.
Folha - Um de seus quadros mais célebres é "Mona Lisa de 12 anos". Poderia falar um pouco sobre sua relação com este mito da pintura?
Botero - Eu fiz uma série de Mona Lisas para provar a mim mesmo que o tema é importante, mas que o mais importante, mesmo antes do tema, é a linguagem e o estilo.
Se tomarmos um tema muito conhecido, como é o da Mona Lisa, e trabalharmos com uma grande personalidade e com uma linguagem totalmente pessoal, chegamos mesmo a esquecer que este tema vem de alguma parte, ou seja, ele se torna completamente original, pois o que é importante é a linguagem.
Eu fiz uma série de Mona Lisas para mostrar, principalmente, que através de uma forte personalidade pictórica pode-se chegar a uma obra original, mesmo partindo de um tema mundialmente conhecido.
Folha - O que o sr. conhece da pintura brasileira?
Botero - Da arte brasileira conheço pouco: Di Cavalcanti, Lasar Segall, Portinari. Não sei por que os artistas brasileiros expõem pouco fora do Brasil, expõem muito no Brasil. Mas é difícil ver em Paris ou Nova York exposição de pintores brasileiros. Um país que tem tanta cor, plasticidade e dinamismo tem muito para mostrar em termos de pintura.
Folha - Um quadro seu foi encontrado na casa de Pablo Escolar, líder do cartel de Medellín. O sr. poderia falar sobre isto?
Botero - Em primeiro lugar, ninguém pode evitar que estes senhores tenham o que quiserem em sua casa. Na casa de Pablo Escobar encontraram dois ou três quadros de Dalí e outro tanto de Picasso –e um quadro meu. Havia também 20 Mercedes, Rolls Royces, motocicletas, havia de tudo o que se possa imaginar.
Portanto, eu não posso controlar quem compra os meus quadros, assim como a Mercedes Benz não poderia evitar que Pablo Escolar comprasse seus carros. Eu nunca tive nenhum tipo de contato com aquele senhor, a não ser pela imprensa. Agora, ninguém pode controlar que alguém compre alguma coisa que você fez. Na época, eu protestei junto aos jornais colombianos por ver meu nome ligado ao deste senhor. Isto foi o que eu pude fazer e mais nada.

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