São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1995
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A pintura crítica de Mark Tansey

LEYLA PERRONE-MOISÉS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vi recentemente, no Museu de Belas Artes de Montreal, uma grande exposição do pintor norte-americano Mark Tansey. Tansey nasceu na Califórnia em 1949, vive e trabalha atualmente em New York. Tem sido classificado como pintor histórico, artista narrativo, pintor filósofo e, mais genericamente como pós-moderno. Nenhuma dessas etiquetas o define, porque Tansey se parece com muita coisa, mas afinal é único de sua espécie.
Tansey nasceu sob o forte domínio da arte abstrata, e cresceu no período da arte pop e conceitual. A grande pintura americana dos meados do século 20 foi a escola tradicional onde ele se formou, a academia em que as descobertas e ousadias já se haviam transformado em norma. Minha formação de artista parecia uma aula de catecismo, disse ele. E partiu em busca de outros caminhos. Tornou-se um figurativo, autor de quadros e óleo de grande formato que, à primeira vista, parecem um retorno ao realismo. Um olho em Hopper e outro no hiper-realismo, mas com implicações diferentes.
A técnica de Tansey, apuradíssima, consiste em recobrir toda a tela com uma única cor e depois ir removendo a tinta pouco a pouco, criando as imagens apenas com valores obtidos com branco e preto. O resultado são grandes cenas monocromáticas que parecem reproduções de velhas fotos dos anos 40. De fato, ele usa, como ponto de partida, fotos tiradas de revistas daquela época, e suas cores preferidas são as cores tipográficas de então: rosa, azul, sépia.
A opção pelo representativo, pela pintura "com conteúdo", não é o que faz a sua originalidade. Apesar do inegável domínio da abstração, a pintura do século 20 jamais abandonou a figuração. E na última década tão numerosos foram os pintores que a ela "voltaram", que receberam a denominação geral de novos figurativos, merecem várias coletivas e estudos.
A originalidade de Tansey está na ambição e na complexidade de seu projeto, que não é representar, documentar ou narrar cenas reais, mas, através de representações pseudo-realistas explorar questões de filosofia, estética, antropologia, linguística e teoria literária que se encontram originalmente nos livros das bibliotecas universitárias. Cada quadro de Tansey é uma resposta a esses textos e ao espectador. Chato? De modo algum. As questões são aí desenvolvidas com uma inteligência sensível e um humor sutil que habitualmente estão ausentes dos textos teóricos universitários. E o resultado final não é falatório, mas obra visual.
Um dos quadros de Tansey se chama "O teste do olho inocente" (pintado em 1981 e pertencente ao acervo do Metropolitan). Um grupo de senhores antiquados com cara professoral desvenda solenemente um quadro bucólico: dois bovinos embaixo de uma árvore. É um quadro de Paulus Potter, pintor holandês do século 17. Na parede, ao lado, aparece um quadro de tema igualmente campestre, um monte de feno de Monet. Os olhares dos professores se concentram no espectador para o qual eles estão mostrando o quadro: uma vaca real na mesma escala dos bovinos pintados, que olha atentamente para seus símiles, um dos quais encara a vaca espectadora. No canto direito da cena, um dos cientistas, de avental, anota cuidadosamente os resultados da experiência.
O efeito cômico é imediato: que resultado esperam esses cientistas obter com experiência tão trabalhosa (levar uma vaca à galeria de arte)? o que a vaca está achando do quadro? será que ela se identifica com o tema? E nós, espectadores reais que olhamos a vaca olhar seus irmãos pintados? Na incerteza, nosso olhar fica tão bovino quanto o da vaca e nosso sorriso perde sua superioridade. O quadro de Tansey pode ser uma metáfora da percepção da arte. Os cientistas são os críticos de arte? Vastos problemas filosóficos, científicos e estéticos nos vêm à mente. Ou será que, pensando neles, estamos apenas tentando recuperar nossa superioridade de seres racionais, estamos pegando nosso bloco mental de anotações, como o cientista do quadro, e perdendo nossa capacidade de ter um olhar inocente? Frank Stella tem uma frase famosa, que certamente estava presente na reflexão de Tansey: "O que você vê é o que você vê.
Outro quadro de Tansey se chama "Branco sobre branco" (1986). Numa grande planície desolada, varrida pelo vento, enfrentam-se dois grupos humanos, vindos um em direção ao outro. À primeira vista, uma impressão de "déjà-vu": um quadro acadêmico do gênero paisagem exótica, ou uma fotografia de revista geográfica mostrando as intempéries em locais distantes e inóspitos. Um olhar mais detido detecta a incongruência da cena: um dos grupos é constituído de árabes com seus camelos, o outro de esquimós com seus cães e trenós. Areia e neve se fundem perfeitamente, tornando a cena visualmente tranquila, enquanto o conhecimento que temos das roupas e atributos das personagens nos alerta para a impossibilidade geográfica desse encontro. Sorrimos da brincadeira. Mas será que ela se esgota aí? A cena neutraliza numerosas oposições: calor-frio, Norte-Sul, céu-terra, luta-reconciliação. Pensamos então na banalização do exótico, promovida pelas facilidades das viagens turísticas e pela abundância de imagens em revistas geográficas. Pensamos no desaparecimento progressivo das roupas típicas, das diferenças culturais, aquele apagamento do "arco-íris das culturas" de que fala Lévi-Strauss (de quem Tansey é leitor).
Observamos que nenhum dos dois grupos humanos desse "Branco sobre branco" é da raça branca. Lembramo-nos de que o problema puramente pictórico do branco sobre branco é um dos marcos da pintura do século 20, com Malevitch. Pensamos que, na linguística estrutural (outra leitura habitual de Tansey), é a oposição que cria o sentido e, quando esta é abolida, o sentido se perde. Tansey pensou em tudo isso? Pensou certamente em muitas dessas coisas e em outras que ainda não nos ocorreram. Mas seu objetivo não é apenas que recuperemos o que ele pensou, mas que continuemos a ver e a pensar para além dele.
As questões inspiradoras da obra de Tansey foram se tornando cada vez mais complexas a partir de 1990. Grande leitor dos teóricos literários da Escola de Yale, leitores eles mesmos dos estruturalistas e pós-estruturalistas franceses, Tansey transformou esses intelectuais em personagens protagonizando cenas que alegorizam as teorias desenvolvidas em seus livros. Já em 1987 ele pintara "A montanha de Sainte-Victoire", onde aparecem, diante da célebre paisagem tantas vezes pintada por Cézanne, um grupo de banhistas entre os quais reconhecemos Derrida, Barthes e Baudrillard, especialistas em mostrar que todo texto esconde outro texto, e que as coisas não são o que parecem. Ora, o reflexo da cena na água transforma todas as imagens: a montanha se torna caverna, o céu vira rochedo, os banhistas se transformam em mulheres.
Em 1990, ele pintou "Close reading" (literalmente: leitura de perto). Uma alpinista escala um rochedo. Olhado bem de perto, o rochedo está coberto de fragmentos de texto quase ilegíveis. São restos de textos de Paul de Man, mestre do desconstrucionismo de Yale, extraídos de sua obra "Blindness and Insight", onde ele diz: "Os textos literários são eles mesmos críticos, mas cegos, e a leitura crítica tenta desconstruir a cegueira." A alpinista, com a cara no rochedo, parece não estar vendo nada, apenas concentrada no esforço físico da escalada.
Um outro quadro do mesmo ano, mais grandioso, se chama "Construindo o Grand Canyon". Na majestosa paisagem dezenas de jovens escavam, martelam, furam com britadeira, peneiram cascalho.

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