São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1995
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A pintura crítica de Mark Tansey

LEYLA PERRONE-MOISÉS

No centro da cena, um grupo de homenzinhos comanda o trabalho. São eles, entre outros: Paul de Man e Derrida; sentado mais adiante, um pensativo Harold Bloom; Michel Foucault, no canto direito, observando.
Como no quadro precedente, as paredes do Grand Canyon são cobertas de textos, que vão sendo pouco a pouco reduzidos a pedaços e a pó. O grupo de filósofos alude à "Escola de Atenas", de Rafael. Homenagem aos desconstrucionistas? Bastante ambígua. Como se sabe, o desconstrucionismo consiste em desmontar, em escavar os textos, revelando indefinidamente o que está "sob rasura". É o que estão todos fazendo ali. Mas essa tarefa será, como na antiga filosofia, uma busca elevada da verdade? "Construir" o Grand Canyon já é, em si, uma idéia estapafúrdia. E na verdade eles o estão destruindo. É que Tansey é ele mesmo um desconstrucionista, e seu quadro desconstrói os próprios filósofos e suas teorias. Isso além de sua pintura ser, técnica e materialmente, o resultado de infinitas rasuras.
Mais ambíguo ainda é o belíssimo "Derrida interroga de Man", do mesmo ano de 1990. Numa paisagem montanhosa, Derrida e de Man, de mãos dadas, lutam ou dançam (impossível decidir) à beira de um abismo. A cena se inspira numa ilustração da obra de Conan Doyle, "The Final Problem": a luta de Sherlock Holmes com o Professor Moriarty. Trata-se de uma alusão à polêmica que resultou da descoberta, após a morte de de Man, de que ele se aliara a grupos nazistas em sua juventude. Naquela ocasião, Derrida tomou a defesa do colega, numa atitude de visível mal-estar. Ainda aqui, as montanhas são estampadas com linhas dos textos de "Blindness and Insight".
A temática de Tansey não se restringe à atualidade. Outros quadros seus alegorizam a caverna de Platão, a roda de Da Vinci, a história da pintura. Divertidíssimo é "O triunfo da Escola de Nova York", de 1986, onde Picasso, Duchamp, Matisse, Dali e outros, vestidos como soldados da Guerra de 1914, se rendem aos "generais" americanos Pollock, Newman, Rothko, de Kooning e outros, vestidos com os uniformes muito mais descontraídos da Segunda Guerra Mundial. O quadro é uma paródia da "rendição de Breda" de Velázquez.
Na verdade, é toda a história da pintura que ele revisita em seus quadros. O Renascentismo tem aí um lugar especial, que ele explora no uso da alegoria, na temática da roda, da moldura, na prática da perspectiva e do "trompe-l'oeil". Num texto de sua autoria, ele diz que seus quadros aspiram à categoria dos "scherzi" e caprichos, como os de Tiepolo, Goya e Max Ernst. Do Surrealismo, ele recupera o gosto das velhas imagens, as colagens surpreendentes. Essa mistura não deve ser qualificada apressadamente de pós-moderna, porque Tansey não se limita a citar e combinar, de modo lúdico e casual.
A arte de Tansey pensa e faz pensar. Mas não é a pura ilustração de conceitos, porque são as imagens que produzem pensamento, sem deixarem de ser imagens. O historiador de arte George Kubler disse certa vez que cada obra é a solução de um problema. Mark Tansey comenta: "O importante é que cada solução aponta para a existência de algum problema para o qual já houve outras soluções, e que outras soluções para o mesmo problema serão provavelmente inventadas em seguida. À medida que as soluções se acumulam, o problema se altera. A cadeia de soluções, no entanto, nunca desvenda o problema."
Não há portanto, nos quadros de Tansey, nenhuma pretensão à verdade ou a unicidade do conceito, prévio ou posterior à produção da obra. Apenas uma cadeia de soluções, uma "fieira de metáforas" (a expressão é dele) na qual se inscrevem o artista e os espectadores. Suas alegorias não têm uma leitura final, são destinadas a serem "lidas e relidas", como diz a crítica Judi Freeman, que assina um excelente texto no catálogo da exposição.
Os conceitos básicos da obra de Tansey são o de busca/perda da verdade e construção/desconstrução do sentido. A busca da verdade é alegorizada pela grande quantidade de personagens que, em sua obra, estão cavando, limpando, procurando coisas em fendas, despindo roupas. A construção é a atividade aparente de muitas personagens, munidas de aparelhos e máquinas da engenharia. Mas a tarefa a que elas se dedicam é geralmente absurda, como por exemplo medir uma costa marítima com fita métrica. O empirismo de seus "cientistas" e o amadorismo de seus "técnicos", opostos à força de uma natureza grandiosa, apontam para uma atitude cética e irônica com relação ao saber e à tecnologia.
A arte de Tansey leva a reflexão sobre a representação à própria prática da pintura representativa. A representação foi conotada negativamente pelos pintores abstratos e pelos teóricos do texto posteriores. Em se tratando de pintura, as palavras "assunto" ou "significado" foram banidas. Irreverente, Tansey representa os próprios abstratos. No quadro "Mito da profundidade" (1984) ele coloca Rothko, Motherwell e outros num barquinho, observando Pollock que, como Cristo, caminha sobre a água. Nos textos filosóficos das décadas de 70 e 80, a "era da representação" foi dada por encerrada. Identificada com o velho idealismo platônico, ela deveria, depois do "corte epistemológico", ser substituída pela era da produção materialista de um sentido sempre diferido.
Ora, respondendo à objeção de que a representação plástica é unívoca, acrítica, conservadora, totalitária, historicista, enquanto a textualidade é polissêmica, crítica, aberta, etc., Tansey quer demonstrar que a representação pictórica é um "texto" e que é possível questionar, nela, o ato de referência, abrir brechas entre a representação e seu assunto, desestabilizar a relação entre o significante e o significado, o espectador e o tema.
O método do espectador para o contemplar um quadro de Tansey deve ser o mesmo que ele usa para o conceber. Ele parte de perguntas simples, jornalísticas: quem? o que? quando? onde? por quê? As perguntas vão aos poucos se complicando, até atingirem uma grande complexidade conceitual. Em 1989, Tansey estabeleceu esquemas verbais, tabelas compostas de listas de "oposições", "problemas", "motivos" e "metatemas" combináveis entre si de modo a produzir inúmeros casos a serem explorados. Concebeu em seguida uma roda de madeira constituída de anéis cobertos de palavras; rodando-se os anéis, obtém-se 5.872.000 possibilidades, como num imenso "cadavre exquis", jogo inventado pelos surrealistas.
Cabe perguntar: por que ele não usou um computador? Uma foto do ateliê de Tansey é muito esclarecedora: uma grande sala cercada de estantes com pastas de papel (um arquivo de imagens, que ele junta desde a infância); uma longa escrivaninha em semicírculo coberta de caixas para papéis; uma mesa de canto e um cavalete tradicional; um gato; uma bandeja com bule e leiteira; nenhuma aparelhagem eletrônica à vista. Tansey é um anacrônico, seu mundo de referências é constituído de livros e revistas, imagens impressas. Vale lembrar que ele é filho de um historiador e de uma bibliotecária. CD-ROM e realidade virtual, em princípio tão convenientes para uma criação como a sua, parecem não lhe interessar. Tansey é um artesão manual, um sensual, um apreciador das matérias antigas como a tela, o óleo, o papel e a madeira.
Os conceitos manuscritos ou gravados na "roda" permitem uma visão simultânea do conjunto e sua percepção como objeto artístico muito diversas da memória, poderosíssima, mas oculta, do computador. A única concessão à tecnologia é uma velha máquina de xerox em branco e preto que ele usa, em desenhos recentes, para juntar imagens que depois ele retoca manualmente. Ele mesmo explica o método dizendo: "Diferentemente do computador, onde a interpretação digital interfere entre a mão e a imagem, a máquina xerox permite que a mão imprima diretamente na superfície reprodutiva e produz os mesmos grânulos tonalizadores obtidos pela impressão mecânica."
Como mais uma surpresa, esse artista nostálgico tem uma cara de garotão esportivo nada antiquado. Se depender dele, o velho mundo dos livros, dos textos que fazem pensar e das ilustrações que fazem sonhar, que podem ser tocados com as mãos, e o mundo ainda mais velho do óleo sobre tela não vão morrer tão cedo. Com Tansey, estamos de volta, levando na bagagem tudo o que o tempo acumulou; os arranjos datam porém de hoje, assim como a incerteza sobre seu sentido e sua finalidade.

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