São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1995
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África do Sul quer reforma na educação

FERNANDO ROSSETTI
ENVIADO ESPECIAL A PRETÓRIA

O ministro de Educação da África do Sul, Sibusiso Bengu, 60, administra um dos piores legados do regime do apartheid: um sistema de ensino que gasta mais de três vezes por aluno branco do que por aluno negro.
Professor de história, doutor em ciência política pela Universidade de Genebra –onde ficou exilado 14 anos–, Bengu entrega esta semana ao presidente Nelson Mandela o documento que delineia a nova política educacional do país.
Na última quinta-feira, o ministro recebeu a reportagem da Folha em seu gabinete em Pretória. A seguir, trechos da entrevista.

Sibusiso Bengu - Eu gostaria de dizer que eu já estive no Brasil. Quando estava lá, começou o tempo dos exílios, como o de Paulo Freire, por exemplo, com quem eu estava me relacionando. O que ocorria lá era semelhante ao que ocorria aqui.
Folha - Quando foi que o sr. esteve no Brasil?
Bengu - Muitas vezes. Eu tinha vários projetos de pesquisa. Cheguei a ir mais de duas vezes por ano.
Folha - O sr. citou o Paulo Freire. Na África do Sul, vocês tiveram a Pedagogia Fundamental, que, de certa forma, era o inverso do que o Paulo Freire propunha. Como o ministério vai lidar com isso?
Bengu - Essa é uma área de grande preocupação. Estamos terminando hoje nosso documento político (White Paper) e a área que está sendo escrita agora, enquanto falo, é sobre reciclagem e desenvolvimento de professores. Metade dos professores que temos não tem qualidade. Nosso maior desafio é transformar o sistema de educação mudando, crucialmente, o treinamento dado ao professor.
Folha - O que diz o documento que está sendo escrito?
Bengu - É um documento que estabelece as políticas gerais de educação. O documento é uma moldura geral para a educação nacional. As questões específicas relacionadas às escolas são de responsabilidade das Províncias. Já nas instituições de ensino superior, o ministério não só estabelece as normas como tem o controle.
Folha - Qual será o acesso à educação no país?
Bengu - A Constituição dá acesso à educação para todos, jovens e velhos. Mas a educação é gratuita e compulsória para as primeiras nove séries.
Folha - O que mais é estabelecido na Constituição?
Bengu - O direito à diversidade cultural de educação. Mas na maioria dos casos o que ocorre é que se confunde cultura com raça. Você pertence à raça à qual nasceu e não pode mudar isso. O apartheid funcionava nessas linhas.
Mas eu, por exemplo, aprendi a cultura dos brancos, posso conviver com os brancos, morei 14 anos em Genebra. Cultura não segue linhas raciais. Algumas pessoas demandam seus direitos culturais como se não pudesse ter crianças negras em suas escolas. Isso nós não podemos aceitar porque a Constituição proíbe o racismo.
Folha - Mas há algumas escolas que não estão aceitando alunos negros.
Bengu - Isso terá de ser negociado. A nova situação do país foi atingida através de negociação e é assim que deve ser. Houve quem disse que lutaria para que sua escola permanecesse branca. Mas não vai haver luta. Vamos resolver os problemas de uma forma sul-africana.
Folha - O documento tem propostas de curto, médio e longo prazos?
Bengu - A de curto prazo é o que estamos fazendo agora, que é introduzir a educação não-racial. Isso não pode ser adiado. Aí há um plano de cinco anos –que é o tempo deste governo. Estamos estabelecendo indicadores que devem ser antingidos nesses cinco anos.
Folha - Por exemplo?
Bengu - Por exemplo, na equidade. Com o orçamento que recebemos, gastamos mais de três vezes por criança branca do que por criança negra. De 1995 para 1996 deslocamos as verbas das escolas "brancas" para as escolas "negras" em 15%. Tínhamos opções diferentes. Mas se fizésssemos um deslocamento muito grande haveria problemas do outro lado. Queremos poder dizer que estamos gastando a mesma verba por criança sul-africana no fim do governo.
Folha - O que vocês vão fazer com os diferentes tipos de escolas que têm (brancas privadas, brancas subsidiadas, negras, para mulatos, asiáticos, entre outras)?
Bengu - Temos tantos tipos de escolas que nós decidimos criar uma comissão de revisão, que vai ser estabelecida até o final do mês. Essa comissão vai definir os tipos de escolas que teremos e como elas serão mantidas e organizadas.
Propomos que deva existir o menor número possível de escolas diferentes. Talvez as particulares, as que têm ajuda do governo e as estatais gratuitas. Até o final de julho, quando tivermos o relatório, as escolas poderão escolher em qual categoria se encaixar.
Folha - Como está a questão salarial dos professores?
Bengu – Os salários são uniformes de acordo com os tipos de escola. Pretendemos criar isonomia para todas categorias.
Mas isso vai levar tempo para se atingir. Não dá para se fazer de uma vez, pois gastaríamos todo o dinheiro com professores. Confesso que eu não gosto dos salários atuais dos professores. Os escalões de cima, tudo bem.
Folha - Quanto é isso?
Bengu - Uns 130.000 rands por ano (cerca de R$ 37.000). O que está abaixo disso é o que precisamos corrigir. Os mais baixos estão em cerca de 2.000 rands ao mês (cerca de R$ 570). A idéia é alcançar a isonomia em três anos.
Folha - Quanto do orçamento do governo é investido em educação?
Bengu - 22%, o que é muito dinheiro. Em padrões internacionais eu poderia dizer que estamos muito bem. Mas o dinheiro era desperdiçado. A unificação das diferentes estruturas administrativas em uma central e nove nas Províncias vai fazer com que muita gente perca seu emprego, e esse dinheiro poderá ir para as escolas. O problema é que durante os primeiros dois anos isso será oneroso, porque é caro aposentar e despedir pessoas. Muito dinheiro vai para isso. Mas uma vez que conseguirmos isso, em três, quatro anos, teremos mais dinheiro para as escolas.
Folha - Ainda se usa punição física nas escolas primárias. Há debate sobre isso?
Bengu - Pessoalmente, eu sou contra. Alguns professores, quando punem com raiva, podem até machucar os alunos. Mas é mais uma questão que terá de ser discutida em cada escola.
Folha - Hoje, todas as instituições de ensino superior do país são estatais, embora pagas. O que vai acontecer com elas?
Bengu - Todas as universidades têm subsídio do governo. Mas, nos últimos anos, esses subsídios têm sido cortados. No ano que vem queremos aumentar o subsídio em 5%. Os subsídios são pagos por uma fórmula que vai contra as instituições de ensino que eram negras. Por exemplo, a fórmula prejudica estudantes e instituições que têm reprovação ao final do primeiro ano. Mas isso não é justo. A maioria dos estudantes que vai para as universidades negras vieram de uma educação pior e assim muitos repetem ao final do primeiro ano.
Folha - E haverá bolsas?
Bengu - Sim, estamos levantando fundos para um sistema de bolsas. Queremos dar às universidades a cor da África do Sul. Essa é a corda bamba: não interferir na autonomia mas ao mesmo tempo estimular as universidades a se transformarem.
Folha - Quem vai reestruturar o currículo das escolas?
Bengu - É o governo central. Nós já começamos. A primeira fase foi chamada de limpeza do currículo, porque o que era ensinado era cheio de distorções. Eu fui professor de história. Mas a dor de ensinar coisas que eram erradas, mentiras e distorções ideológicas me fez ensinar duas histórias.
Ensinava o que era certo, mas, como com isso eles não passariam nos exames, eu também ensinava o que estava nos livros. Se nós éramos pegos ensinando o que era certo perdíamos nosso emprego. Agora, estamos preparando materiais suplementares. A segunda fase será uma revisão a longo prazo dos currículos.

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