São Paulo, segunda-feira, 23 de janeiro de 1995
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A lucenização de FHC

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA – Encantam-me os detalhes. É por apreciá-los que não me concedo perdão por ter deixado escapar, por entre as frestas de minha percepção traidora, um saborosíssimo pormenor da solenidade de posse de FHC.
Por sorte, pude resgatá-lo. A minúcia sobrevive, em perfeito estado, numa gravação feita em vídeo. Deu-se depois do discurso de posse, pronunciado diante do Congresso. Fernando Henrique falou bonito, como de hábito. Prometeu uma cruzada antimiséria; jurou combate aos privilégios.
Ele estava de pé. Tinha à sua esquerda, sentados, os ouvidos atentos de Humberto Lucena, presidente da Casa. Concluído o discurso, o novo presidente desceu ao nível de Lucena. Fisicamente, quero dizer.
Fernando Henrique acomodou a coluna no espaldar da convidativa poltrona que lhe fora reservada. O estofado confortou-lhe o costado, torturado naquele dia por uma inconvenientemente ativa hérnia de disco.
Lucena, apertando-lhe o braço, deixou pingar dos lábios o prato que hoje saboreio com atraso, requentado pelo vídeo. "Brilhante", sussurrou o homem de 130 mil calendários.
Volto a fita. Não há dúvida. O "brilhante" é sonoro. E, captado pelo microfone à frente de Lucena, perfeitamente audível. A um comentário do gênero costuma seguir-se o protocolar "muito obrigado".
Mas Fernando Henrique, cenho grave, emudeceu. Não se sabe se calou por estar concentrado na dor que lhe chegava pelas costas ou pelo desejo de evitar comprometimentos.
Fundado justamente para distanciar-se do fisiologismo do PMDB, tão bem representado pela figura de Lucena, o PSDB de Fernando Henrique teve no elogio do presidente do Congresso um reencontro com suas origens.
Submetido à proposta de anistia de Lucena, Fernando Henrique, agora sentado na cadeira de presidente, não poderá servir-se do silêncio. Ou veta a proposta, em respeito ao discurso da posse, ou a sanciona, "lucenizando-se" de vez. Neste último caso, estará novamente descendo ao nível de Lucena. Moralmente, quero dizer.

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