São Paulo, sexta-feira, 27 de janeiro de 1995
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FHC corre o risco de ser um novo Sarney

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Na festa da posse, o governo FHC parecia preparar-se para um alegre cruzeiro na primeira classe de um transatlântico, rumo às águas calmas do Mediterrâneo.
Smokings, vestidos de baile, artistas, intelectuais: embarcava-se para o Primeiro Mundo; não o brega, o de Miami, mas sim aquele, ensolarado, meridional, transparente e culto, de Felipe González, Mário Soares, Mitterrand.
As dificuldades vividas por Fernando Henrique nestas primeiras semanas de governo –anistia a Lucena, aumento para os deputados, novo salário mínimo– transportam-nos para águas mais turvas. Não estamos em Palma de Mallorca, em Ibiza ou Saint-Tropez; mais uma vez, nos encaminhamos às costas do Maranhão.
Desde o governo Sarney, as coisas se repetem: um Congresso fisiológico, corporativo e indecente trata de negociar com o Executivo todas as vantagens de que for capaz.
Pouco importa a personalidade do presidente, a força de seu ministro da Fazenda, as disposições da opinião pública. Fernando Henrique está diante do Congresso assim como Sarney esteve: pressões de toda ordem, escândalos, teoria do "é dando que se recebe".
Não é o caso de a gente se decepcionar muito com isso. A candidatura FHC construiu-se numa aliança explícita com o fisiologismo e as oligarquias: Antônio Carlos Magalhães, Marco Maciel, José Sarney... Como esperar outra coisa, se não os dilemas que atravessam o governo hoje em dia?
O engraçado é que os ideólogos do PSDB pareciam minimizar esse risco. Dizia-se: a aliança com o PFL e com pilantras de menor coturno é condição de "governabilidade". Fernando Henrique não conseguirá levar adiante seu programa se não dispuser de "sólida base parlamentar".
Santa cretinice. É como se, no Brasil, houvesse fidelidade partidária e coerência ideológica. Pensar que oligarquias regionais, dependentes dos favores do Estado, viessem a se alinhar com o projeto liberal-moderno de FHC é conto de carochinha.
Os impasses conjunturais da Presidência –vetar a anistia de Lucena, vetar o salário mínimo– refletem um problema estrutural, que se repete há dez anos.
Trata-se do seguinte: como manter a "ordem", o "status quo", contra os malditos radicais do PT? Como evitar que Lula chegue ao poder?
Diante dessa ameaça, as alianças mais contraditórias e espúrias se fazem. Vejamos.
O empresariado paulista quer privatização, fim do estatismo, menos impostos. Está cansado de corromper fiscais do governo. A classe média alta quer carros importados e aparelhos de som. Está cansada de depender dos free-shops e das viagens a Miami.
Enquanto isso, as lideranças políticas regionais continuam vivendo dos investimentos públicos: nova ponte em Quixeramobim, chafariz em Chapecó, posto de saúde em Taubaté, empreguinho para o primo de Uberaba.
A contradição salta aos olhos. A base fisiológica do governo exige manipulação política das verbas estatais, enquanto a cúpula social e ideológica quer desestatização e competitividade moderna.
O projeto liberal-burguês de Fernando Henrique exigiria o desmantelamento das oligarquias regionais, audácia no relacionamento com o Congresso, guerra contra o corporativismo dourado de parlamentares, juízes, funcionários graduados da Petrobrás e do Banco do Brasil.
Mas as coisas não são tão fáceis. Fernando Collor sabe disso. Sua retórica era desestatizante e primeiro-mundista. O problema é que, afrontando os interesses estabelecidos no Congresso, reuniu um grupo de gângsteres extraparlamentares. Seu esquema de favoritismo e corrupção não seguia os trâmites usuais do Legislativo. Daí o impeachment.
Fernando Henrique não quer se arriscar a um novo conflito com o Parlamento. Está escaldado com o impeachment de Collor. Não quer ser um novo Collor. Corre o risco de ser um novo Sarney.
Estruturalmente, as coisas continuam como há dez anos: depende-se de oligarquias desonestas e oportunistas para fazer a modernização. Medidas de controle inflacionário precisam ser aprovadas por um Congresso pródigo em emendas escandalosas.
Pior que isso: o Congresso está deixando de agenciar favores regionais, está deixando de canalizar migalhas do orçamento em prol desta ou daquela base eleitoral. Está agindo como corporação autônoma: só se reúne para votar aumento dos próprios salários, anistia para seus pares.
Não quero parecer autoritário, fascista, ou coisa que o valha, mas o Congresso vai se tornando uma instituição inútil e perniciosa. Tanto que a única solução é governar por medidas provisórias.
Como resolver esse impasse? Tudo dependeria de reformas no sistema eleitoral –voto por distrito, voto não-obrigatório, por exemplo– e de mudanças radicais no sistema educacional.
Mas há outra coisa, mais importante do que reformas constitucionais, aliás irrealizáveis porque dependem do próprio Congresso.
Refiro-me à política dos meios de comunicação de massa, rádio e TV; é no que se refere ao controle ideológico das retransmissoras da Rede Globo que se dá o real conflito de poder.
Não por acaso, a Rede Globo oscila entre o projeto modernizador de FHC e as fidelidades regionais a Antonio Carlos Magalhães. Mais do que no Congresso, é nos bastidores da Rede Globo que se faz o efetivo confronto político. As oligarquias regionais controlam os meios de comunicação, as retransmissoras, as novelas, o Jornal Nacional. Perto disso, a capacidade manipuladora de FHC, toda a sua simpatia Cepacol, valem muito pouco.
O Ministério das Comunicações é hoje tão ou mais importante do que o Ministério da Fazenda. Sérgio Motta obtém destaque no noticiário, afirmando intenções de rever a prática atual das concessões políticas de rádio e TV. Desconfio.
E Fernando Henrique vai parecendo cada vez mais o "Bom de Boca" dos anúncios de Cepacol. Aparece apenas nos intervalos comerciais desta interminável novela que começou com Sarney.

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