São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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Obrigado por não fumar

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Houve um tempo em que se vivia pouco e imaginava-se que a vida tinha uma finalidade. Viver para Deus, para uma idéia, para uma obra. Jovens imberbes erguiam peças magistrais. Outros empenhavam-se em conquistas e revoluções. Outros, ainda, dedicavam-se ao pensamento, à ciência, a descobertas cruciais.
Hoje vive-se muito mais. Mas para quê? Em que se resume, afinal, o ideal da vida em nossos dias? Comprar o Windows 95, ter um bom emprego, aplicar em commodities? Usar roupa do fulano, viajar, ter fama, namorar uma loura burra ou um homem rico?
Imaginemos uma daquelas enquetes de telejornal: ``É isso que o sr. ou a sra. gostaria de ter?", pergunta a repórter, trocando olhares com a câmera e os entrevistados.
Respostas: ``Ah, minha filha, ia ser bom demais, mas não estou com essa bola toda, não". ``Quem me dera". ``Craro, dona".
Os que vivem para sobreviver sonham com essa que seria a verdadeira vida -aquela que a cultura contemporânea proclama sem parar: ser jovem, saudável, bonito, magro, sedutor, famoso, rico, feliz. Império de Narciso. Reino de hedoné.
Não há causas por que se morrer, todos os livros foram escritos, as músicas compostas, as lógicas pensadas. Resta, então, o único fim: a vida.
E como tudo em nossos dias, ela está no mercado: livros de auto-ajuda, vitaminas, academias, esteiras para andar em casa, bicicletas ergométricas, cremes, clínicas, comida dietética...
Ah, gozar a vida! Exercitar-se todo dia, não comer carne, não beber, usar camisinha, não consumir drogas e, claro, não fumar.
Está aí a receita para atingir a meta final: morrer, sim, mas um minuto, três semanas, quatro meses ou alguns anos depois do amigo fumante, gordo, desregrado, carnívoro e promíscuo.
Claro, isso se tudo der certo. Porque ainda não estamos a um passo da eternidade. Vírus aparecem de uma hora para outra como a querer reafirmar que a natureza nos programou mesmo para ter um fim. Mas, atesta a ciência, afirmam os especialistas, garantem os doutores: se você cumprir à risca, vai viver mais.
Foi, certamente, pensando nisso que o prefeito Paulo Maluf resolveu proibir cigarro em restaurante. Está muito certo. Garante, assim, que na hora do repasto ninguém possa encurtar a vida. Ao menos com tabaco. Pense quanto tempo os paulistanos viverão a mais graças ao decreto!
Pena que, por uma lamentável falha, não se cogitou em interditar a ingestão, comprovadamente maléfica, de doses excessivas de gordura, açúcar refinado e álcool nos restaurantes. Faça rápido, prefeito. A vida é breve.

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