São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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A opção pelo déficit externo

LUCIANO COUTINHO

O suposto de que o padrão de financiamento para as economias em desenvolvimento mudou de forma estrutural nos últimos anos e que, doravante, será possível a essas economias financiar déficit externos expressivos e continuados merece exame mais detido.
Com efeito, o influxo de capitais para os países em desenvolvimento quase quadruplicou entre 1990 e 1993, subindo de US$ 40 bilhões para US$ 155 bilhões ao ano (i.e., crescendo à incrível taxa de 57% ao ano), criando a impressão de uma formidável bonança financeira. Mas, já no primeiro semestre de 1994, a velocidade do ingresso de capitais se reduziu e o fluxo totalizou US$ 125 bilhões ao longo do ano.
Com a eclosão da crise mexicana em dezembro do ano passado, ocorreu o início de uma fuga considerável desses capitais de volta para as economias centrais. Não fosse interrompida pelo esquema de salvamento montado pelo governo norte-americano, para dar um mínimo de liquidez ao México, essa fuga de capitais poderia ter se transformado num crash financeiro global.
Estancada a crise, ao longo de 1995 o trauma foi sendo digerido e, lentamente, os influxos de capitais começaram a voltar -com os gerentes desses fundos e instituições procurando ser mais seletivos na escolha dos mercados-alvo. Os países do leste asiático que haviam sido menos afetados pela crise começaram a receber recursos novamente. Na América Latina, o Brasil principalmente absorveu capitais crescentes a partir de junho.
Três fatores que explicam a extraordinária expansão do movimento de capitais: 1) a recessão nos países centrais até 1994 com taxas de juros muito baixas e reduzida demanda por recursos; 2) o avanço da globalização financeira com rápida expansão das aplicações dos investidores institucionais (fundos mútuos, cias. de seguro, fundos de pensão, bancos e corretoras) nos chamados mercados emergentes; 3) a prévia solução do problema da dívida herdada dos anos 80, por meio da securitização destas sob o Plano Brady.
Considerando que este último fator já é fato consumado, resta indagar se as duas outras causas apontadas são suficientemente poderosas para assegurar a continuidade do financiamento às economias em desenvolvimento. A conjuntura cíclica das economias desenvolvidas é intrinsecamente mutável e, portanto, pode tornar-se adversa no momento em que a economia mundial voltar a crescer sincronizadamente, provocando aumento nos juros e ampliação da demanda por fundos.
Cabe então examinar a robustez da tendência de diversificação das aplicações dos investidores institucionais dos países desenvolvidos, particularmente com relação aos mercados emergentes.
Como é sabido, a fonte principal de oferta de capitais para esses mercados tem sido os investidores institucionais, as empresas transnacionais e os bancos. No período 90-94, o perfil da oferta teve características muito distintas entre regiões. No caso das economias asiáticas, os investimentos diretos representam parcela dominante (55%) dos fluxos, enquanto os capitais financeiros, de portfólio, participaram com 25% (o restante sendo distribuído em outras modalidades, como o crédito bancário).
No caso da América Latina, porém, dois terços dos influxos naquele período foram de capitais financeiros líquidos, altamente sensíveis a juros, tendo a contribuição dos investimentos diretos se situado ao redor de 30% (o crédito bancário teve papel muito pouco relevante). A fonte principal dos capitais financeiros foram os investidores institucionais dos EUA, particularmente fundos mútuos e fundos fechados, que passaram a deter em carteira um percentual importante de papéis dos mercados emergentes da América Latina.
Em contraste, os fundos de pensão revelaram um interesse limitado nesses ativos(*). Os rígidos requisitos de desempenho por parte de seus clientes/patrocinadores tornam esses fundos bastante conservadores e avessos ao risco. Sua diversificação para ativos estrangeiros, embora crescente, é cautelosa e concentrada em títulos e ``blue chips" de países desenvolvidos onde é elevado o grau de informação e de transparência.
Os mercados emergentes, particularmente depois da crise mexicana, não se qualificaram, portanto, como receptores relevantes para essa categoria de investidores.
Uma avaliação das tendências dos investidores institucionais europeus e japoneses indica uma maior disposição em tomar posições nos mercados emergentes, mas, também, de forma cautelosa e claramente seletiva. Em resumo, a oferta de fundos para os países em desenvolvimento continuará existindo no futuro, mas não se pode postular que o seu fluxo será regular e crescente no futuro.
Uma mudança na situação cíclica das economias desenvolvidas com elevação da taxa de juros -um cenário perfeitamente possível em 1997-98- pode estreitar consideravelmente as condições de oferta de recursos para os países em desenvolvimento.
Uma política de crescimento sólido e duradouro para o Brasil não deve, portanto, basear-se no suposto de que será possível financiar, persistentemente, déficits externos da ordem de 3% do PIB. Com a atual taxa de câmbio o desempenho da nossa balança comercial não inspira segurança. Não há garantia de superávits expressivos, mesmo com a economia pouco aquecida.
Com efeito, em 1995 o crescimento das nossas exportações deveu-se muito mais aos significativos aumentos de preços das commodities semi-processadas, enquanto as vendas dos produtos manufaturados vêm exibindo estagnação.
Com superávits comerciais reduzidos, a dependência do ingresso de recursos externos manter-se-á elevada, ainda que aumentem significativamente os investimentos diretos, em face do forte e crescente desequilíbrio da conta de serviços (-US$ 19 bilhões em 95). No ano corrente estima-se que os investimentos diretos aportarão cerca de US$ 2,5 bilhões. Admitindo-se que esses investimentos poderão crescer e, digamos, dobrar de patamar, isso não será suficiente para reduzir substancialmente a necessidade de financiamento, dado que o déficit em serviços também continuará crescendo. Em resumo, a atual política cambial tende a manter um desequilíbrio elevado nas transações correntes com o exterior, o que implica a formação de novos passivos externos, de curta maturação e alta volatilidade, numa velocidade insustentável a médio prazo.
Enquanto a liquidez mundial permanecer frouxa, em face da fragilidade da economia japonesa e da desaceleração do crescimento dos EUA e Europa, o financiamento desse déficit continuará tranquilo. Mas, se dentro de dois anos a economia mundial se recuperar e os juros internacionais voltarem a subir, poderemos enfrentar dificuldades que serão tanto mais graves quanto maior o volume de passivos acumulados. Por isso, o Banco Central deveria reduzir logo a sobrevalorização cambial, abandonando a postura imprevidente, para não empenhar irresponsavelmente o futuro do país.

(*) Vide FMI, International Capital Markets, agosto/1995, pp 172

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