São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995 |
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A face feminina da tragédia
BIA ABRAMO
As meninas ainda preservam traços de amor, amizade, credulidade, responsabilidade, solidariedade, confiança, ingenuidade, curiosidade, frescor. Enfim, traços de humanidade, destinados a ser esmagados, violentados e negados num mundo em que o outro se tornou objeto de consumo. Em vez de simplesmente se prestarem ao papel de vítimas, as garotas opõem, na verdade, uma certa resistência à desumanização das relações, forçada pelo comportamento dos meninos. São as únicas ainda capazes de sentir, mesmo que isso cause dor e raiva. Apesar do sexo ser fácil, no sentido da frequência e disponibilidade, está longe de constituir uma língua franca entre homens e mulheres. Em um certo sentido, a sexualidade, mesmo que revestida por uma aparência de liberação, está na raiz da oposição entre os meninos e as meninas. Para os garotos, a sexualidade é puro exercício de narcisismo e negação do outro. Telly deseja as virgens pela ilusão de objeto novo, seguro, sem marcas, como se fosse uma mercadoria bem-embalada e dentro do prazo de validade da loja de conveniência. Casper, por sua vez, é capaz de transar com uma garota dopada e inerte, porque sexo não significa a possibilidade de uma relação e sim um ato que se pratica de forma mais isolada e individual possível. A sequência mais notável do filme mostra uma conversa simultânea sobre sexo. Meninas de um lado, meninos de outro. Elas trocam idéias sobre as suas experiências, preferências e desejos. Os olhos brilham, os sorrisos rememoram o prazer experimentado. A certa altura, uma menina diz: "Sexo é bom". Para as garotas, ainda há fruição de um prazer e não há vergonha nem diminuição em declarar que o prazer está relacionado ao outro. Quando Jenny descobre estar contaminada pelo vírus HIV, ela sai em busca de Telly. Ela quer comunicar, compartilhar o fato. Jenny não quer vingança. O fato da sua contaminação também pertence a Telly. Assim como a fruição do prazer, o sentimento da morte também é uma construção só possível entre seres humanos. Por isso, a face da tragédia só pode ser feminina em "Kids". Destituídos de humanidade, por fastio ou por uma desvalorização cultural sistemática, os meninos se mantêm sem consciência -e, de certa forma, ao abrigo- da tragédia. Mesmo que venham a sofrer suas consequências -e vão, porque Telly é soropositivo-, a tragédia não vai atingi-los. Jenny paga o preço alto do sofrimento não por transar sem camisinha, mas por ainda ser sensível à vida, ao amor e à morte. P.S.: Talvez as feministas americanas fossem de maior serventia se, em vez de reivindicar uma artificial igualdade de representação de meninos e meninas em um filme como "Kids" (como se isso garantisse a igualdade de fato e, mais ainda, como se a igualdade significasse respeito), pudessem enxergar que a diferença, ainda bem, faz diferença. Texto Anterior: A estética da decadência hype Próximo Texto: A nova guerra civil Índice |
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