São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A nova guerra civil

GILBERTO DIMENSTEIN
DE NOVA YORK

Erramos: 08/12/95
James Darby tinha nove anos, morava em New Orleans e decidiu, em 1994, mandar uma carta ao presidente Bill Clinton. Nos seus garranchos infantis, ele fez um inesperado pedido: ``Gostaria que o senhor parasse a matança na minha cidade. Posso acabar sendo morto".
Nove dias depois, ele voltava a pé para casa depois de um piquenique em que comemorou o Dia das Mães. Por causa de um tiroteio entre gangues de jovens, uma bala perdida perfurou seu crânio.
A carta foi a herança que ele deixou e serve, hoje, como um dos mais dramáticos símbolos de um país corroído e, até aqui, derrotado pela violência, onde meninos matam meninos.
Os Estados Unidos, maior potência militar do planeta, conseguiram vencer todos seus inimigos externos, mas estão perdendo a batalha interna. Por ano, 20 mil pessoas são assassinadas; em dois anos, tem-se quase o mesmo número de soldados americanos que morreram no Vietnã. Outros 2 milhões são feridos.
``Vivemos um clima de guerra civil", afirma Merien Edelman, uma das mais notáveis ativistas de direitos humanos nos Estados Unidos. ``A violência entre os jovens é um dos maiores problemas americanos", acrescenta Janet Renot, ministra da Justiça.
Há quem atribua a queda dos assassinatos em algumas cidades americanas, como Nova York, ao fato de que os mais perigosos acabaram se matando. Foi medido estatisticamente: é menor a chance de um jovem em bairros como Harlem chegar a 40 anos de idade do que a de jovens de países como Bangladesh, marcados pela pobreza e as doenças.
Pelo menos metade das pessoas presas têm menos de 25 anos. Algumas delas dizem não se importar. Ir para prisão é reeencontrar os amigos de rua e, ainda por cima, não se esforçar para comer.
Em 1992, segundo o FBI, a polícia federal americana, foram presos 1,8 milhão de jovens -o que daria para lotar mais de dez vezes o estádio do Maracanã.
Esses números são reflexo da marginalidade e do colapso das relações sociais que envolvem as mais variadas formas de rebeldia -sexo, música, drogas, jeito de vestir, passando pela recusa ao trabalho ou à educação. ``O sentido da vida passa a afirmar-se pelo desafio", analisa o antropólogo Roberto DaMatta, professor da Universidade de Notre Dame.
Depois de sair da aula, em Reseda, na Califórnia, Michael Ensley levou um tiro porque sorriu para um garoto -o sorriso foi encarado como deboche e desafio. Foi seu último sorriso. Uma menina sexualmente retardada foi violentada por jogadores de futebol em Glen Ridge, Nova Jersey. Em Houston, duas garotas cruzaram, sem saber, uma área arborizada, na qual dois garotos eram iniciados numa gangue. Devido a essa ``ofensa", foram violentadas e, em seguida, estranguladas.
Transbordam casos e até mesmo policiais mais experientes se espantam com o grau de crueldade e frieza juvenil. Charles Conrad, um paraplégico de 55 anos, é apenas outro bom exemplo, entre tantos que se disseminam pelo país.
Atualmente, homicídio é a terceira causa de morte entre crianças de 5 a 14 anos; a segunda quando se refere às faixas de 10 a 24. Fica, porém, em primeiro lugar quando se analisa o jovem negro. Eles são atingidos por algumas das 211 milhões de armas que circulam pelo país; nos Estados Unidos, há mais lojas que vendem armas, cerca de 300 mil, do que postos de gasolina. O crime vira rotina. Dois pesquisadores americanos -Joseph Skeley e Dwayne Smith-, da Universidade de Tulaine, constataram, em pesquisa, que 20% dos alunos de escolas de segundo grau não viam nada de errado em atirar em alguém.
A situação chegou a tal ponto que uma cineasta, Maria Ousseimi, resolveu incluir uma inesperada cidade em seu documentário sobre crianças que vivem em países de guerra. Ela percorreu países como Líbano, Moçambique, El Salvador, ex-Iugoslávia, mas, no final, encontrou ampla matéria-prima bem a seu lado, mais precisamente em Washington.
Ali, uma menina de dez anos, por exemplo, comentou que o ``maior problema" em seu bairro é olhar alguém e a pessoa não gostar. Segundo ela, existe o sério risco de tiro, a exemplo do que ocorreu com o rapaz de 17 anos na Califórnia com seu último sorriso. ``A Disneylândia é o lugar mais seguro em que já estive. Adoraria morar lá", disse.
O fenômeno da gangue não é novo nos Estados Unidos. Já em 1948, o então presidente Truman dizia: ``O problema da delinquência juvenil afeta seriamente todo o país". Acontece que, naquele tempo, usavam-se mais os punhos do que sub-metralhadoras automáticas. Num país repleto de universidades, cientistas sociais, psicólogos, pedagogos, criminologistas, descobrir as causas da violência -e, a partir daí, propor soluções- tornou-se uma obsessão.
``A gangue é uma forma de se integrar, de dizer: `eu existo' ", afirma a médica Debora Pruthrow, de Harvard, uma das maiores especialistas americanas em delinquência infanto-juvenil.
A investigação de gangues em Nova York, na Baixada Fluminense ou em Osasco, em São Paulo, vai mostrar raízes semelhantes. A violência progride à medida que progride a marginalidade -ou seja, a incapacidade de integrar pessoas à comunidade. A gangue passa ser um ambiente aceito e respeitado. Basta que haja coragem e solidariedade com os companheiros.
Num ritual iniciatório, o candidato é obrigado a praticar gestos de ousadia, enfrentar o perigo e, claro, ferir e matar. Nesse código de ``masculinidade", o sexo torna-se mais uma forma de auto-afirmação: representa mais do que uma busca afetiva ou biológica, um adorno da figura do ``macho".
``A revolta é total. Confronta e confunde o poder dos adultos em todos os níveis", afirmou documento lançado em 1992 pela Promotoria Pública de Los Angeles, cidade infestada por gangues -muitas delas exportadas para países da América Central, com garotos treinados nas ruas americanas, que, assim, compõem redes internacionais movidas a drogas e roubos de carros.
As montanhas de pesquisas produzidas nas universidades apontam para um perfil semelhante do marginalizado com tendência a pegar em armas: família desestruturada (mãe chefiando a casa), drogas ou bebibas no lar, experiência de violência doméstica, incapacidade de absorção no sistema educacional e, depois, dificuldade de obter empregos. Some-se, então, a discriminação ética e racial, que acaba atingindo negros e hispânicos, principal mão-de-obra das gangues. Tudo isso num país que a cada dia reforça a idéia do sucesso e do consumo, estabelecendo limites de aceitação de novas e sofisticadas tecnologias -saber manejar a informática é, hoje, tão importante como saber ler ou escrever.
O destino é a rua, onde os indivíduos, muitos deles com pai ausente ou inexistente, recebem orientação apenas de seus colegas de vandalismo ou traficantes.
O professor Cornel West estudou o comportamento de comunidades negras, nas quais reina a sensação de inutilidade pessoal, o que levaria, segundo ele, à auto-destruição. ``Vida sem sentido, sem esperança, gera um comportamento frio que leva não apenas à busca da auto-destruição, mas também a dos outros", complementa.
A idéia é compartilhada por policiais. ``A necessidade de ser aceito num grupo é tão universal e, talvez, tão antiga como o próprio homem", afirma Ron Stallworth, chefe do departamento de inteligência contra gangues do Estado de Utah.
Segundo ele, a gangue preenche o espaço de ser reconhecido e, ainda por cima, ter poder, outra busca universal e tão antiga quanto o próprio homem. ``Os jovens querem se sentir seguros e protegidos. Muitos entram nas gangues apenas por um sentido de sobrevivência", diz Ron, que se especializou nas manifestações artísticas da violência, como a música rap.
Num livro intitulado ``A Explosão das Gangues Negras de Chicago", Eugene Perkins afirma: ``A gangue torna-se a base de poder e permite ao indivíduo sentir-se importante numa sociedade em que, a rigor, seria ignorado. O sentido de poder é decisivo para a sua vida". O problema é que o comportamento agressivo não se limita às camadas mais pobres. Está se disseminando por toda a sociedade. O psicólogo Thomas Achenbach fez entrevistas com milhares de jovens em meados da década de 70 para conhecer seu comportamento. E voltou a fazer dez anos depois.
Ele descobriu que a criança e o jovem americanos estão se tornando mais ansiosos, indisciplinados, exigentes, sem auto-controle.
Nesse ambiente, prosperou o conceito, agora na moda, de ``inteligência emocional" -a capacidade de manter-se equilibrado para enfrentar conflitos e novos desafios. Essa ``inteligência" seria decisiva para a prosperidade econômica de um país.
Por esse conceito, na visão do psicólogo Daniel Goleman, ex-professor de Harvard, autor do livro recém-lançado ``A Inteligência Emocional", a juventude americana está cada vez mais violenta e, portanto, mais ``burra", apesar de todo o avanço tecnológico.

Texto Anterior: A face feminina da tragédia
Próximo Texto: Um exemplo do Harlem
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.