São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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Um mundo chamado `home'

BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

``Kids" não é um filme sobre crianças, nem sobre adolescentes, nem sobre uma geração. É um filme sobre um estado presente das relações que só não podem ser chamadas de amorosas porque nelas não há mais o menor resquício de amor.
``Kids" não é terrível e chocante por mostrar o estado de ``nossas crianças" (como dizem os americanos), por mostrar como se drogam e que se fodem uns aos outros (literalmente) sem qualquer responsabilidade ou proteção.
``Kids" é terrível e chocante antes por mostrar um mundo onde não há nenhum sentimento, onde não há a menor possibilidade não só de amor, mas de solidariedade, ou mesmo de raiva, de indignação. Um mundo terrível por ser totalmente inumano, embora ainda habitado por seres humanos (passivos, inconscientes, radicalmente narcisistas e hedonistas).
``Kids" é provavelmente um filme ``moralista", mas num sentido radical, tão moralista quanto um texto trágico. O filme não pode servir, por exemplo, de argumento para a cruzada moralista da direita americana, justamente por ser excessivo, radical e trágico. De fato, a direita americana vê que há algo errado nessa sociedade, mas em sua hipocrisia moralista não pode suportar a idéia de que o erro esteja no princípio, numa espécie de essência, na própria forma como se constitui essa sociedade (e na própria forma que essa mesma direita pretende continuar promovendo).
É uma sociedade que tenta negar o sofrimento, afastando-o para fora de suas fronteiras; uma sociedade que procura ver o bárbaro no outro e nunca em si, porque só se preocupa consigo mesma, está fascinada por sua própria imagem; uma sociedade de princípio absolutamente narcisista.
Trata-se de um mundo seguro e ilusório, que eles chamam de ``home", onde tudo é construído (ou deveria, idealmente) para que ``suas crianças" sejam protegidas do sofrimento do mundo, como se vivessem num parque de diversões para adultos, o que termina por infantilizá-los, tornando-os seres não-reflexivos, mas simplesmente práticos, fechados em si mesmos, preocupados, como crianças, com a satisfação e o prazer imediatos, fazer dinheiro para ter prazer e ter prazer com o dinheiro.
``Kids" pode ser uma metáfora desse mundo, de uma sociedade que, em seu narcisismo e hedonismo materialistas e pragmáticos, dificulta a maturação dos sentimentos, da reflexão e de uma dose equilibrada e necessária de espiritualidade, promovendo com isso, entre outras, situações grotescas como a do financista de Wall Street que precisa ir tomar ácido numa tribo indígena do Arizona para alcançar algum tipo de contato espiritual consigo mesmo, antes de voltar aliviado para sua firma na segunda-feira.
``Kids" é em grande parte menos um ``documentário" que uma metáfora radicalizada, sobretudo do comportamento masculino que floresce sob tais condições sociais, que promovem um ensimesmamento narcisista. Uma metáfora que toca mais profundamente o que há hoje de mais terrível na sociedade americana que qualquer outro filme recente produzido no país. Ao lado de ``Kids", o grosso da produção do cinema americano, sobretudo os filmes de ação, criados para um público masculino (de Schwarzenegger a Tarantino), mas também os singela e artificiosamente românticos, parecem brincadeiras de crianças, meras variedades desse parque de diversões para adultos.
Em certo sentido, ``Kids" é menos um filme contra os homens que a favor das mulheres. É nelas que resta um último vestígio de sentimento e de humanidade. São a última possibilidade de salvação. A certa altura, o protagonista diz: ``Fuck is what I have. If you take it from me, I have nothing". Noventa e nove por cento do universo gay de Nova York, por exemplo, um universo absolutamente masculino, se comporta da mesma maneira. É um mundo que, em sua concentração masculina, reduziu todo sentimento à sedução e ao narcisismo, um mundo insuportável em sua imaturidade e hedonismo insaciável, embora tão sedutor, pelo menos à primeira vista, quanto um parque de diversões.
As feministas americanas atacaram o filme, enfurecidas pela representação passiva que faz das meninas. Ora, mais uma vez, é a infantilidade promovida por essa sociedade que emburrece a crítica, que faz com que não se possa mais ver a arte como uma manifestação trágica. A idéia de uma expressão trágica passa a ser insuportável, por encarar sem soluções artificiais o que havia sido recalcado de mais fundamental. Se ``Édipo Rei" fosse escrito hoje nos Estados Unidos, as feministas provavelmente reivindicariam uma modificação no ``roteiro".
Na onipotência infantil das feministas americanas, a arte é reduzida a uma cartilha, toda expressão artística é reduzida a modelos ideais e educativos de comportamento, para que as ``crianças" possam repetir na vida o que vêem na tela.
O que ``Kids" faz é criar uma obra trágica como há muito não se via na cultura americana, que parecia ter banido o sentido trágico tanto da arte como do ser humano, na tentativa de viver uma produção sublimada, de entretenimento no sentido de distração, que apenas corrobora essa negação infantilizada do sofrimento. A violência só pode ser ``cult" na carne de quem não a conhece.
``Kids" é um estranho ruído nessa cultura. Uma imagem desagradável por mostrar o resultado dessa sublimação, dessa felicidade artificial, e expor na cara do espectador americano esse sentido trágico que havia sido sublimado. Com o filme, a sociedade americana tem que encarar de frente sua infantilidade hedonista, percebendo-a não mais como uma mera estetização ``cult", mas como a emergência do que havia sido recalcado. Tem que perceber que para tudo nesse mundo existem consequências.

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