São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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Uma geração de autistas sociais

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O alvoroço armado em torno de ``Kids", antes mesmo de sua estréia, promete repetir por aqui as rodadas de discussões exaltadas entre entusiastas e detratores do filme, a exemplo do que vem ocorrendo nos EUA.
Por lá, sob ameaça de ser censurado por conservadores indignados com tanta depravação, ``Kids" foi ``adotado" por parcela da mídia e dos formadores de opinião.
Saíram em sua defesa, alegando que o filme, além de um retrato fiel da tragédia de uma geração mal saída das fraldas, seria um eficaz instrumento de esclarecimento de pais incautos, pedagogos bem-intencionados e outros profissionais que gastam seu tempo tentando encaminhar vidas mais ou menos perdidas.
Uma revista de variedades mundanas, que gosta de abraçar causas e provocar confusões, como a ``Interview", dedicou uma reportagem de capa a ``Kids" com o seguinte título: ``O filme que os censores não querem que você veja".
Por trás desta arena onde se digladiam conservadores e, à falta de termo melhor, liberais de toda espécie, há uma ambiguidade de fundo. ``Kids" pode tanto ser visto como um filme abjeto e imoral como representar, pelo contrário, o último rebento de uma maré ultraconservadora insuflada pelo pânico da Aids.
Um espectador agudo, vendo o filme, disse a certa altura que parecia algo encomendado pelo Conselho Mundial de Igrejas. Haveria, segundo ele, uma enorme carga didático-moral no afã com que ``Kids" se ocupa e apresenta uma a uma todas as formas de descaminho dos seus adolescentes.
Não seria exagerado afirmar que o filme tem algo do sabor de um ``x-tudo" da geração perdida, no qual todos ingredientes da transgressão são devidamente servidos ao espectador faminto.
É neste sentido que ``Kids" talvez seja um filme destinado a servir de munição para assistentes sociais, psicólogos, adeptos da nova pedagogia e outros representantes de comunidades solidárias -todos discípulos involuntários de Rousseau, querendo trazer os jovens de volta à inocência de que foram cruelmente arrancados por uma ordem social doente, que corrompe, exclui e, por fim, barbariza.
É verdade que ``Kids" não solicita em nenhum momento um remédio de tipo rousseauniano às feridas que escancara. Pelo contrário. Seu impacto e eventual grandeza está na determinação com que rejeita transformar a tragédia em melodrama (vide ``Filadélfia"), no despojamento com que pinta um diagnóstico sem perder tempo com saídas, na exposição crua da trama, que tem cheiro de documentário e entronca com a melhor tradição do cinema neo-realista.
Nessa linha, um dos achados de ``Kids" está no tratamento que dá aos diálogos, muito pouco construídos, próximos da entropia ou da função fática, o que lhes confere uma verossimilhança raramente alcançada no cinema.
No início do filme, um grupo de garotos está reunido num apartamento dos pais (ausentes) de um deles. Semidrogados, largados em sofás ou espalhados pelo chão, eles começam a falar sobre suas conquistas sexuais. Os diálogos giram de forma monótona entre interjeições sem sentido e revelações que descem a detalhes do ato sexual. As cafajestadas se sucedem. O espectador é jogado dentro do universo masculino. As frases poderiam muito bem estar na boca de respeitáveis executivos reunidos no clube, durante uma sessão de sauna no sábado à tarde.
A câmera se volta a seguir para as garotas, reunidas num outro apartamento. As falas são igualmente desarticuladas e o repertório também se concentra na descrição de cenas minuciosas de sexo. Mas aquilo que na voz dos garotos aparece como conquista a ser exibida com estardalhaço, nas garotas surge na forma de confidência íntima, ligeiramente envergonhada.
O contraste entre as duas cenas, que vão sendo intercaladas, mostra o que há de comum entre os jovens, ao mesmo tempo em que revela o abismo entre os sexos.
Em ``Kids" meninos e meninas não se comunicam, vivem em mundos intransponíveis, contrariando toda a voga pós-moderna que exalta a indiferenciação, a igualdade entre os sexos, as figuras do homem sensível e da mulher empreendedora.
Telly, o personagem central de ``Kids", é uma caricatura miniaturizada de don Juan. Portador do vírus HIV, coisa que ignora, tem como único prazer na vida iniciar sexualmente meninas de 12 ou 13 anos, que de virgens passam à condição de infectadas.
Jenny, a vítima de Telly, concentra em si o ideal romântico, ingênuo e puro em que ``Kids" acaba confinando as mulheres. Sela sua morte porque acredita em declarações meladas de amor que não passam de conversa fiada.
Satisfação sexual, desejo de destruição e instinto autodestrutivo confundem-se num contínuo indiferenciado. O poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger descreve essa realidade em seu ``Visões da Guerra Civil", quando afirma que ``nas ações espontâneas (dos jovens) expressa-se a raiva das coisas em bom estado, o ódio por tudo o que funciona e que forma um amálgama indissolúvel com o ódio por si mesmo".
Sem passado, futuro, causas a defender, laços afetivos, família ou qualquer referência capaz de localizar sua existência, o jovem vive sua vida ruidosa num presente indefinido e infinito.
É curioso que a demência dos personagens de ``Kids" toma conta até da aparência física dos jovens, que parecem ser meio deformados, como se fossem vítimas de anomalias neurológicas.
Menos que jovens sem rumo ou niilistas, Telly e seus iguais anunciam em ``Kids" uma geração inteira de ``autistas sociais".

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