São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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O desafio do intelecto

FERNANDO ALTEMEYER JUNIOR

``Estejam sempre prontos a dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la pede; fazei-o, porém, com mansidão e respeito, conservando a boa consciência."
1 Pd 3,15-16a.

A tarefa principal do homem de fé é amar e dar sentido a este amor. Somos convocados a construir um discurso que nos abra as portas do infinito e da beleza do humano, sabedores de que a nossa fé não termina na formulação verbal, mas na realidade formulada (``Fides non, terminatur ad enuntiabile, sed ad rem" -Sto. Tomás de Aquino).
O lugar de onde falamos se torna nosso ``locus theologicus". Limitado, imperfeito, contextualizado, palavra humana, mas ponto privilegiado para atingir o mistério de Deus que se fez palavra racional.
A história humana e sua inteligibilidade é lugar das relações humanas, mas sobretudo lugar privilegiado da revelação. Pelo vocabulário do humano, Deus nos conta seus segredos de amor, tocando nossos corações e mentes.
A reflexão sobre o caminho da fé une indissoluvelmente a ação à palavra, a obra à sua proclamação, o critério de plausibilidade à verificação da verdade dessa linguagem, que revela e que busca penetrar o insondável, o inefável, como expressou São João Crisóstomo. Ensina o atual catecismo da Igreja Católica (número 35) que ``as faculdades do homem lhe tornam capaz de conhecer a existência de um Deus pessoal. A fé não se opõe à razão humana".
A racionalidade humana construiu durante a história um discurso inteligível sobre Deus para evitar fanatismos e ateísmos estéreis. Em nome da fome insaciável de uma palavra viva e doadora de vida, homens e mulheres de fé se atreveram a pensar uma fé encarnada num mundo de conflitos e de dor. Lutaram até com o Criador para descobrir que são por Ele amados.
Todos os fiéis sabem que o sujeito do pensar da fé é sempre Deus em si mesmo e sua comunicação histórica com as pessoas, pois Deus se doa a si mesmo e, concomitantemente, oferece sentido e inteligibilidade a essa busca.
Ao proclamar a palavra da fé, sentimo-nos tomados pela Palavra viva de Deus. Buscamos manter fidelidade inteligente ao povo e à Deus. Essa liberdade do pensar humano será a possibilidade única de uma comunhão sem medo.
A tarefa do pensar a fé consiste em participar dos segredos de Deus, velados pelas trevas de nossa incompreensão, mas anunciados historicamente pelos profetas e plenamente revelados por seu Verbo encarnado que, habitando entre nós, nos possibilita a contemplação de sua glória.
Construir um discurso racional da fé é caminho necessário no desvelar contínuo de segredos, nessa sede incessante do infinito. É um exercício que pressupõe disciplina, coerência pessoal e teológica constantes. Nada que toca o humano pode ser alheio ao homem de fé: ``Homo sum: humani nihil a me alienum puto". Especialmente a razão.
A teologia é simultaneamente ciência da razão humana e uma ``fides quaerens intellectum": fé em busca de inteligibilidade, palavra que subsiste dentro de um universo epistemológico concreto.
A ciência da fé recorre sempre aos diversos discursos científicos que portem algo de novo e próprio à compreensão antropológica para que possa, a partir dessas mediações ditas primeiras, articular um discurso segundo, de base antropológica, mas chamado teo-lógico. ``A fé é uma posse antecipada do que se espera, um meio de demonstrar as realidades que não se vêem." Hb 11,1.
Esse discurso da fé apresentará dentro do universo cultural de um povo aquilo que os fiéis reatualizam, ``hic et nunc", em suas próprias vidas e história, como o grande acontecimento e mistério da revelação e relação com seu Deus.
Ouçamos o filósofo francês Blaise Pascal, em seus pensamentos:
``Pensar faz a grandeza do homem. O homem não é mais que um caniço, o mais frágil da natureza, mas é um caniço pensante. Dois excessos: excluir a razão e não admitir nada além dela. Se nós submetermos tudo à razão, nossa religião não terá nada de misterioso ou de sobrenatural. Mas se nós formos contra os princípios da razão, nossa religião será absurda e ridícula."
Nós, cristãos evangélicos, conhecemos a verdade pela razão e pelo coração numa operação articulada e dinâmica. Uma revelação e uma busca. Nós nos esforçamos por articular uma ciência da fé simultaneamente crítica, sistemática e dinâmica, como deve ser todo esforço científico e hermenêutico.
Afirmamos que a Palavra divina se serve da linguagem humana como porta de entrada privilegiada de novos significados. A linguagem da fé, a cada amanhecer, é sempre uma surpresa, um movimento transgressor da especulação e, sobretudo, um desafio à inteligência do homem. Fé como surpresa de Deus e desafio da razão na sua constante busca de originalidade.
Sermos capazes de Deus é uma das maravilhas do humano, em sua racionalidade e em seu amor.
O homem de fé nasceu para Deus. Deus para praticar as ações e o fiel para vivê-las e escrevê-las, com todo o coração, toda a alma, toda a força e, lucidamente, com toda sua inteligência.
Devemos calar-nos reverencialmente no fim do percurso racional e não no princípio de nossa reflexão, por respeito ao homem e também a Deus, que nos fez racionais. A irracionalidade da fé é um atentado a Deus e ao homem. Nossas palavras sempre estão aquém do mistério, mas dentro d'Ele.
Se a fé não oferecer resposta adequada, racional e consistente às angustiantes e vitais perguntas dos pobres, massacrados pela injustiça idolátrica, deve repensar sua prática, pois fé sem obras é morta. Se responder de maneira clara e convincente a essas questões, terá passado no teste de qualidade de seu discurso racional, pois já nos lembrava Miguel de Cervantes, pela boca do eminente teólogo Sancho Pança:
``Bem prega quem bem vive, respondeu Sancho, e eu não sei outras teologias".

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