São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995 |
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Rua Mila
CARLOS HEITOR CONY Ontem fez quatro meses que perdi Mila. Fui ao armário onde guardo suas lembranças, mexi em papéis, o pedaço de tapete que ela roeu quando tinha cinco meses -era o único luxo da casa, comprado no mais fundo Oriente. O tapete acabou ficando para ela e foi nele que ela viveu seus últimos instantes.De um envelope caiu a foto, tirada em Varsóvia, a placa da rua Mila, rua que não existe mais. Eu tinha ido à Polônia a trabalho, quis saber onde ficara o gueto que resistira aos nazistas. As autoridades daquele tempo não apreciavam a curiosidade ocidental a respeito de certos assuntos, mesmo assim me levaram à rua Mila. Ela havia sido arrasada, casa por casa, pedra por pedra, pelos nazistas que massacraram o povo que ali vivia. Ao libertarem a cidade, os russos reconstruíram apenas o lado esquerdo, a fim de que não houvesse um número 18 naquele local -que se transformara no centro da resistência do gueto. Procurei o número 18. Não o encontrando, limitei-me a fotografar a placa azul da rua, numa parede cenográfica, pois ninguém parecia morar nela. Os russos têm fama de supersticiosos, não iriam ressuscitar o endereço que tinha, atrás de si, um passado de luta e liberdade. Semanas depois, aqui no Rio, eu estava segurando essa foto para paginar uma crônica quando recebi uma cestinha de pão. Dentro dela, pão gordinho e quente, saído do forno, vinha aquela que seria minha companheira mais que amada. Não tinha nome, embora tivesse pedigree. Precisava dar um nome àquilo. Ainda era ``aquilo". Logo seria aquela a quem eu mais amaria neste mundo. Eu segurava a foto, reparava o nome em letras brancas no fundo azul. De repente, vi que Mila era mais do que uma rua distante numa cidade que nada tinha a ver comigo. Coloquei minha mão em cima de sua cabecinha, ainda pouco maior do que uma bola de tênis. Chamei-a de Mila. E descobri como era macia aquela amiguinha que me chegava numa cesta de pão -pão quentinho que, nos 13 anos que se seguiram, alimentaria minha fome e aqueceria minha mão. Texto Anterior: Demorando Henrique Cardoso Próximo Texto: A necessidade de decidir Índice |
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