São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

papai para presidente

MARILENE FELINTO

Um negro na Casa Branca, a idéia é essa. Presidente pra mim sempre foi presidente americano, desde John Fitzgerald Kennedy. Se hoje eu tivesse de novo cinco anos, realizava de vez a fantasia de ser filha do presidente: do elegante Collin Powell, o general americano que é pré-candidato à Presidência dos Estados Unidos, primeiro negro -na verdade aqui ele seria mulato- com chances de chegar ao topo do mundo.
Todas nós, as meninas da minha rua em Recife dos anos 60, queríamos ser Caroline, a filha de Kennedy. Era cena de conto de fadas, na televisão, o pai brincando carinhosamente com a filha. Nossos pais eram homens mais ou menos brutos, frios, pobres. Nossos presidentes eram generais pavorosos, em suas fardas do Exército sombrio e verde-musgo, sem o charme ou o sex appeal dos americanos.
O dia da morte de Kennedy está gravado na minha memória como um desses retratos amarelados, sempre tão significativos. Chovia, a luz amarelada da cozinha tornava ainda mais triste o dia sem o refrigerante Crush -eu acordara com vontade de tomar Crush e de não ir à escola. Nunca havia dinheiro para Crush.
Enfiei-me debaixo da mesa da cozinha, amuada, revoltada com aquela rotina de feijão com farinha e escola. Foi quando a voz rouca do rádio anunciou que tinham matado Kennedy. Que choque. Meus velhos brinquedos, dentro de uma caixa embaixo da mesa, me olhavam como um amigo que tenta em vão consolar outro. Detestei o monte de trastes, as bonecas de pano feitas em casa, os moveizinhos de lata, as caixas de fósforo, os sabugos de milho que, na falta de coisa melhor, transformávamos em brinquedo.
Vida triste, até o homem dos nossos sonhos matavam. Então só restavam brutos, homens feios, papa-figos dispostos a enfiar em seus sacos de estopa crianças de todas as idades, para comer-lhes o fígado que curasse a lepra deles, a morféia (nome horrível, vida assustadora).
Se naquela época o presidente fosse o carismático e sensual Collin Powell, tão parecido fisicamente comigo, o sonho seria quase real. Powell tem tudo de sonho, até sua recém-lançada autobiografia, ``My American Journey" (Minha Jornada Americana). Pouco importa se será candidato pelo Partido Republicano, pelo Democrático ou independente. Pouco importam as opiniões políticas de Powell. Possivelmente ele não difere muito de Reagan ou Clinton.
O que importa é Collin Powell o mito, a um passo de se tornar o primeiro negro presidente dos Estados Unidos. Powell não é apenas a realização do sonho americano. É também a realização de certo sonho brasileiro: de pobres meninas nordestinas ou do brasileiríssimo e visionário escritor Monteiro Lobato.
Em 1962, Lobato publicou um romance chamado ``O Presidente Negro - Romance Americano do Ano 2228". Na história, o personagem de uma vidente prevê a vitória do negro Jim Roy na eleição do 88. o presidente dos Estados Unidos, concorrendo contra uma feminista e um branco. De fundo racista, o livro termina com uma rebelião da raça branca, que propõe a esterilização de todos os negros através de um processo de alisamento de cabelos.
Lobato errou por pouco. Collin Powell acontece antes do ano 2000. Nos EUA, a maioria dos negros alisa o cabelo, mas não é estéril. O sonho, portanto, continua.

Texto Anterior: FAMÍLIA DINO; TRATO; PERFÍDIA; HOMENAGEM
Próximo Texto: o charme e o cheiro da era de Aquário
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.