São Paulo, quinta-feira, 19 de outubro de 1995
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Amordaçados por algemas

OTAVIO FRIAS FILHO

A idéia de um réu que seja mudo tem algo de pesadelo kafkiano. No entanto, todo réu se sente não apenas mudo como também surdo, ao transferir sua voz para terceiros, seus advogados, enquanto tenta ouvir, aturdido, o jargão incompreensível dos tribunais. Joseph K., de "O Processo", réu por excelência, não entende nem se faz entender.
Mas não se trata tanto de Kafka quanto de Dostoiévski, com pitadas de Agatha Christie, quando seis surdos-mudos vão a júri acusados de esganar e depois esfaquear uma mulher, em conluio com a filha da vítima, suposta rival da mãe na disputa pelo amor do líder dos deficientes. Foi o que ocorreu segunda-feira na laboriosa comarca de Mogi das Cruzes, perto de São Paulo.
O júri americano decide por unanimidade. Em nosso sistema, muito mais perfeito, basta a maioria simples; a decisão tem assim um caráter realmente aleatório, lotérico, como uma roleta. Um dos sete jurados, investidos do sentimento vingador da coletividade e em geral ignorantes do que está dentro ou fora dos autos, pode desempatar.
A incerteza de qualquer sentença, que inspirou um dito escatológico corrente entre advogados, aumenta nesses casos, como o de Mogi, em que a arma do crime não foi encontrada, ninguém viu o assassinato, mãe e filha da vítima depuseram em favor dos réus. Não existem provas, mas indícios, frágeis ou clamorosos conforme o ângulo que se adote.
Durante o julgamento, a convicção martelada por uma das partes, justamente quando estava a ponto de se firmar, era desfeita pelas dúvidas e objeções levantadas pela parte oposta, e assim sucessivas vezes, de modo que pareceria igualmente justo, além de mais econômico para os cofres públicos, deliberar num lance de cara ou coroa.
Com uma franqueza que não teve eco nos jurados, a própria defesa admitia a impossibilidade de comprovar a inocência dos réus. Vendo-se o julgamento de fora, parecia possível, até mesmo provável, que fossem culpados. Mas era este o ponto dos advogados e o problema do júri: compete à acusação o ônus da prova; na dúvida, pelo réu.
Sócrates e Jesus, que se convencionou serem as duas maiores vítimas do erro judiciário, embora tenham falado em seus respectivos julgamentos, recusaram-se a se defender -juridicamente, ficaram mudos. Por ironia, era a imagem de um deles que dominava a sala do tribunal de Mogi, afixada numa cruz de gosto horrível, se ainda é lícito dizê-lo sem insultar a religião.
Naquele ambiente de repartição, tão brasileiro, tão banal, todo feito de fórmica e paviflex, de cafezinhos requentados e funcionárias exaustas, somente essa imagem do Cristo dava o tom expiatório, sacrificial, à tragicomédia levada no palco. Conforme a noite avançava, a platéia foi se enchendo de pessoas que trocavam sinais furtivos entre si, como uma seita de conspiradores, talvez homicidas.
Mas eram apenas amigos, também surdos-mudos, dos réus; pareciam receosos de serem levados a qualquer momento, como K., para a cadeira dos acusados. Depois da meia-noite, foi dado o veredicto, por seis a um: pena de 13 anos e quatro meses. Já tendo cumprido mais de um terço dela, os sentenciados devem ser soltos em breve.
Os réus guinchavam agradecimentos, abraçados a José Carlos Dias e seus colegas da defesa; o juiz lembrou que julgar é tarefa divina que só recai sobre os homens como fardo terrível; os jurados riam à solta, felizes com a bacalhoada que lhes havia sido servida a fim de que nem as angústias da carne perturbassem a leveza dos espíritos.

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