São Paulo, sexta-feira, 20 de outubro de 1995
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Ame-o ou deixe-o

JANIO DE FREITAS

Em dez anos de regime civil, os militares, apesar de um ou outro escorregão, aprenderam mais a conviver com instituições democráticas do que os políticos. A incompreensão do papel do Congresso no regime constitucional, tanto por seus próprios integrantes como, sobretudo, pelo governo, iguala as relações entre esses dois poderes às que lhes são típicas, e tiveram, no regime autoritário.
A melhor contribuição que Fernando Henrique, por aliar a condição de presidente à de "cientista político", poderia dar à construção do regime democrático seria eliminar, nas práticas políticas e institucionais, os vícios e deformações deixados pela herança ditatorial. Dá-se o oposto: Fernando Henrique alimenta a sobrevivência de uns e agrava outros, os piores.
As reações de Fernando Henrique às restrições à sua suposta reforma administrativa são de truculência e pretensão todo-poderosa inconcebíveis mesmo em regime semidemocrático. "Se a questão é política, vamos ver quem é que ganha (se ele ou o Congresso), quem tem a mão forte é o presidente da República"; "Se a comissão insistir em alterar o projeto, eu retiro a proposta e vou à sociedade dizer que o governo cumpriu sua obrigação e o Congresso, não"; "não admito voto contra o governo" -e por aí vai.
No regime democrático, nem os parlamentares de partidos governistas são obrigados a votar sempre com o governo. Têm o direito, ou a obrigação do voto de convicção, por ideologia ou princípio pessoal, e do voto de fidelidade ao que lhes deu o apoio do seu eleitorado. Pretender que esses parlamentares sejam "tratados como inimigos" é característico de ditadura.
O recurso à compra de apoio com favores que ferem os cofres públicos ou, por outros modos, também violam a moralidade pública -prática iniciada já na Constituinte e retomada por Fernando Henrique em plena Constituição- é a alternativa paisana para a ameaça das armas e, do mesmo modo, uma artimanha para subjugar o Congresso ao propósito centralista e todo-poderoso do governo.
O Executivo tem que lutar por seus projetos. Mas fazendo-o com respeito aos papéis e responsabilidades prescritos pela Constituição para cada um dos Poderes. O Congresso subjugado, servil, não importa se por atemorização ou por compra de parlamentares, governadores, meios de comunicação, é uma realidade ou uma pretensão antidemocrática.
As coleções de jornais estão repletas da frase que Fernando Henrique tanto repetiu na campanha eleitoral e já presidente: "O governo vai fazer as propostas e o Congresso vai aprová-las ou emendá-las, isso é o regime democrático". Mas, se parlamentares, os discordantes passaram a ser "inimigos", tal como no regime militar. Se não parlamentares, são "burros" e "impatrióticos", como os adversários de Castello, Costa e Silva, Médici, Otavio Medeiros, Newton Cruz.
A prepotência de Fernando Henrique, em relação aos que não se curvam a ele, acabará cabendo toda em poucas palavras bem conhecidas: "Ame-o ou deixe-o". Que pena, podia ser tão diferente.

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