São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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Boff vê risco de católicos reagirem com intolerância

FERNANDO MOLICA
DA SUCURSAL DO RIO

Pivô de diversas polêmicas com a Igreja Católica a partir dos anos 80, o teólogo e ex-padre Leonardo Boff, 56, afirma que o catolicismo, o judaísmo e o islamismo sofrem da mesma incapacidade de aceitar outras religiões.
Um dos principais formuladores da teologia da libertação -corrente que procura unir a pregação de Jesus Cristo a propostas de transformação social-, Boff afirma em entrevista à Folha que a Igreja Católica só aceita sua própria verdade: quem propõe outras alternativas acaba punido.
Em 1985, Boff foi condenado pelo Vaticano a um período de "silêncio obsequioso", em consequência de seu livro "Igreja: Carisma e Poder". No livro, Boff questionava a estrutura de poder da igreja e propunha um modelo que classifica de "comunitário", em que os padres e os bispos seriam quase que delegados da vontade dos fiéis.
Segundo ele, no primeiro milênio da igreja, os bispos eram eleitos pelos fiéis e o papa, depois de escolhido pelos cardeais, era submetido à aprovação popular. Hoje, de acordo com o teólogo, não há cidadania na igreja.
Autor de mais de 50 livros, Boff, em 1992, anunciou seu afastamento do sacerdócio e da Ordem Franciscana. Seu último livro é "Ecologia, Grito da Terra e Grito dos Pobres", lançado pela editora Ática.

Folha - Como a Igreja Católica trata a questão da tolerância religiosa?
Leonardo Boff - O catolicismo, o judaísmo e o islamismo têm uma mesma origem, que dificulta a aceitação do outro, do diferente. São religiões baseadas na exclusividade da revelação e na concepção de que seus membros formam um povo eleito por Deus.
Isto dificulta o reconhecimento da diferença, dos valores daquele que é diferente. O catolicismo acabou se fixando no dogmatismo, na obediência, no respeito à hierarquia.
Folha - Como o sr. acha que isto se manifesta no episódio da agressão à imagem de Nossa Senhora Aparecida?
Boff - Há aqui o risco de a Igreja Católica cometer o mesmo erro da Universal do Reino de Deus, ou seja, de ser intolerante.
Isto tem ficado claro nas manifestações de d. Lucas Moreira Neves (arcebispo de Salvador e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e de d. Eugênio Sales (arcebispo do Rio).
Ao contrário de outros bispos, eles querem aproveitar o episódio para derrotar o outro, tirar o canal de TV da Universal. Não querem conviver com o excludente.
Há pessoas da hierarquia que estão até felizes com as consequências da agressão: afinal, Nossa Senhora Aparecida é uma espécie de bandeira nacional, um símbolo importantíssimo, e que, ainda por cima, é negra. Mexer com ela é mexer com os sentimentos do povo.
O correto seria admitir que todos cometem erros. A Universal, com todos os seus erros, que são muitos, também é portadora de uma mensagem, de um apelo religioso. Está presente neste mercado religioso.
Folha - Esta lógica seria a dominante na Igreja Católica?
Boff - A igreja é muito rigorosa quanto à sua doutrina, não admite a quebra de unidade. Há momentos em que impera um pluralismo, mas o atual papa (João Paulo 2º) reprimiu a teologia da libertação, a teologia africana, a asiática.
Com ele, a única verdade legítima passou a ser a do Vaticano. Quem sai disto é reprimido. Aconteceu comigo, com Gustavo Gutierrez (padre peruano, primeiro formulador da teologia da libertação), com teólogos europeus, africanos e asiáticos. Desta lógica não escapam nem mesmo setores da ligados à teologia da libertação, que tendem a só ver verdade dentro de sua concepção.
Folha - Na busca de se barrar o avanço de igrejas como a Universal, setores da Igreja Católica propõem uma maior ênfase nos aspectos espirituais. Outros, enfatizam a importância do trabalho dos leigos. Como o sr. avalia isto?
Boff - Existe uma versão espiritual alienante, que separa o espírito do corpo. Não vê o nascimento de Cristo como a encarnação do Verbo, não entende esta encarnação. Deus, afinal, se fez carne. E a carne tem sentimentos, ri, chora, se diverte, está, portanto, no mundo.
O discurso espiritualista dá margem à separação entre, por exemplo, funções do Estado e da Igreja. É esta lógica que separa assuntos que devem ser do Estado, como a resolução dos problemas sociais, e os de caráter espiritual, que devem ser afeitos à Igreja.
Folha - E a questão dos leigos?
Boff - Isto é um mecanismo de fuga da igreja. Quando se sente acuada, convoca os leigos como uma força auxiliar. Convoca-os, mas para cumprir tarefas, não para influir em decisões. No momento em que estes passam a questionar as estruturas da igreja, são cortados.
No fundo, a igreja considera como seus integrantes apenas os membros da hierarquia. Não existe cidadania na igreja.

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