São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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Reestruturar é preciso

DAVID ZYLBERSZTAJN

Quando assumi a Secretaria de Energia de São Paulo, tinha duas certezas. A primeira, de que a moralização da administração das energéticas era uma condição necessária, mas não suficiente. E a segunda, de que o modelo de intervenção estatal na infra-estrutura estava esgotado e que, somente com o redesenho das funções do Estado e a abertura à participação de capitais privados, o setor energético poderia superar a grave crise financeira enfrentada há mais de uma década.
O desafio não era o de simplesmente bem gerir empresas estatais, mas sim conceber uma estratégia efetiva que, reestruturando o setor energético, fosse uma solução viável para o conflito entre a escassez de recursos públicos e a necessidade de investimentos maciços no futuro, sem comprometer a qualidade do serviço ao consumidor.
Enfrentar esse desafio significa afastar o Estado da responsabilidade de viabilizar recursos para investimentos e concentrá-lo nas suas atividades intransferíveis de regulador e fiscalizador da qualidade e dos custos, garantindo as condições legais e institucionais para o retorno dos investimentos.
Isso significa estabelecer regras estáveis para um mercado competitivo na expansão da oferta, regulado na distribuição e com acesso garantido de produtores, consumidores livres e distribuidores ao sistema de transmissão, desverticalizando o modelo industrial do setor elétrico.
A transmissão ocupará o papel estratégico que já foi da geração no passado, quando o problema era atender a uma demanda reprimida por falta de oferta. Hoje, tanto a expansão da geração quanto a redução de custos na distribuição somente se viabilizarão com competitividade efetiva. E isso só é garantido por um serviço de transmissão comercialmente neutro, não vinculado à oferta ou à demanda.
Esses foram os elementos motivadores para a concepção da proposta de reestruturação do setor elétrico paulista apresentada pelo governador Mário Covas em março último. É um plano audacioso porque não é guiado pelo "saudosismo" do modelo estatizante e centralizador, que construiu o atual sistema, mas também facilitou a "privatização indevida" de recursos públicos através da concessão de tarifas favorecidas e levou ao superfaturamento de obras, equipamentos e serviços e à expansão desnecessária por "erros" do planejamento centralizado.
A proposta não é um desmembramento de empresas, mas a completa reorganização das concessionárias controladas por São Paulo, a partir da oxigenação da estrutura organizacional das atuais empresas por meio de "unidades de negócio" especializadas em cada uma das atividades que constituem a cadeia produtiva do setor.
A criação de empresas independentes a partir das unidades de negócio, já implantadas na Cesp, CPFL e Eletropaulo, é uma decorrência do processo e um facilitador para uma política de privatização flexível e modularizável, orientada essencialmente pelo interesse público, permitindo que o Estado volte a capitalizar novos empreendimentos e ajuste a velocidade da política de privatização à disponibilidade de recursos no mercado de capitais.
Em termos de geração, o reagrupamento das concessões por bacia hidrográfica permite a manutenção das atuais condições de administração dos recursos hidroenergéticos e a identificação dos reais custos das usinas. Somente assim se poderá administrar o conflito de competitividade entre a "energia velha" (em operação, amortizada e depreciada) e a "energia nova" (mais cara, pois os custos de expansão são crescentes).
A "energia velha", com seu baixo custo, permitirá que os atuais níveis de custo de fornecimento sirvam como base para um futuro mais competitivo, sem onerar o consumidor.
Esse mecanismo garantirá uma competição justa entre as distribuidoras, uma vez que a manutenção do atual "mix" tarifário de suprimento (representando cerca de 50% do custo ao consumidor final) não será feito pelas geradoras, mas em cada distribuidora, que passará a contratar blocos de energia no mercado, conforme sua necessidade e em regime de competição.
A empresa distribuidora não será mais uma ator passivo no processo, mas diretamente responsável por seus resultados e pelo atendimento à parcela de mercado que remanescer como "monopólio".
Além disso, a ampliação do número de distribuidoras permitirá tornar mais eficiente o papel regulador do Estado por meio dos padrões de comparação direta entre as concessionárias, instrumento transparente e não subjetivo, como é hoje o controle através do custo do serviço.
Para complementar a função fiscalizadora e reguladora do Estado, a proposta prevê "golden shares", um instituto ainda não totalmente compreendido no Brasil.
Não se trata de poderes ilimitados do Estado, mas sim certas salvaguardas, previamente negociadas com a sociedade e com os investidores, para garantir que a qualidade do serviço ou o acesso de consumidores à eletricidade não se faça de forma discriminatória, reforçando e aliviando as funções do Estado.
Além disso, as "golden shares" deverão coibir a cartelização e a reverticalização, fortalecendo a competitividade e a justa concorrência como linhas diretoras da eficiência, da redução de custos e do aprimoramento da qualidade do serviço.
A Secretaria de Energia está empenhada em recuperar a eficiência, a produtividade e a moralidade na administração das energéticas paulistas. Os resultados concretos já obtidos com a redução de despesas, o cancelamento de investimentos desnecessários ou superfaturados e o aumento da produtividade estão sendo comprometidos pelo pesado custo financeiro dos débitos vencidos e não-pagos, herança de gestões anteriores, e pela amortização de empréstimos e financiamentos.
O objetivo da proposta de reestruturação, nesse particular, é viabilizar recursos para o saneamento do passivo, através da maximização do valor das empresas saneadas. Papel fundamental será exercido por "holdings", sob controle do Estado, encarregadas de executar a "engenharia financeira" necessária. Essa "engenharia" envolverá a alocação dos ativos nas subsidiárias e a redistribuição do endividamento de acordo com a capacidade e atratividade econômica de cada uma.
Ao vender participação acionária nessas empresas, as "holdings" se capitalizarão e poderão quitar dívidas e se comprometer com fluxos de pagamentos viáveis (alongando passivos), em função da renda gerada nessas empresas.
Essa solução permitirá novas condições de equilíbrio econômico-financeiro em todo o setor elétrico, beneficiando o consumidor.
A participação de capitais privados no "negócio energia elétrica" dependerá da abertura de nichos especializados e vocacionados para atrair diferentes perfis de investidores, ampliando a quantidade e a qualidade dos recursos disponíveis para garantir a qualidade na prestação do serviço.
E, nesse sentido, a proposta de reestruturação do setor elétrico paulista cumpre a missão de resgatar o papel pioneiro e construtivo que sempre caracterizou São Paulo, apresentando uma saída factível e sintonizada com as tendências internacionais para o setor elétrico.

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