São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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Chinês desafia comunismo e vira mulher

JAIME SPITZCOVSKY
DE PEQUIM

Até 1994, Jen Xeng era um dos mais famosos dançarinos chineses. Neste ano, ele se submeteu a uma operação que o transformou numa das mais famosas dançarinas.
Jen Xeng virou uma mulher, mudança bastante ousada numa China modelada pelo conservadorismo do Partido Comunista.
Jen, 28, mudou de sexo e trocou os documentos, mas manteve o nome, que pode ser usado por homens ou mulheres e significa "estrela dourada".
Num inglês fluente, ela diz que decidiu divulgar a experiência, pela qual cerca de 30 homens já passaram na China. "Só que eles têm medo de contar sua história."
Mas as cirurgias para mudança de sexo na China são feitas, em sua maioria, em pessoas que se automutilam. "A operação acaba sendo para salvar uma vida", conta o transexual, que começou sua carreira artística no Exército.
A operação, realizada em quatro etapas no primeiro semestre de 1995, custou US$ 2.000. "No Ocidente custaria pelo menos quinze vezes o valor", diz Jen Xeng. "O custo de vida aqui é menor, e os médicos encaram a cirurgia como possibilidade de fazer pesquisas".
Atualmente com sua própria companhia de dança, Jen Xeng prepara um show para dezembro.
No cardápio, a dança moderna, mais uma inovação dela para o cenário da China tradicional.

Folha - Como foram a sua infância e adolescência?
Jen Xeng - Aos 9 anos de idade, fui escolhido pelo governo para me tornar um integrante de um dos grupos de dança do Exército. Meu pai é militar. Queriam me treinar para ser dançarino clássico.
Desde então, passei a viver no ambiente militar. Usava uniforme, participava de espetáculos. Praticava balé clássico russo, dança folclórica chinesa e acrobacia.
Além disso, passava pelo treinamento militar, aprendi a mexer com armas, a atirar. Em 1984, terminei o curso do Departamento de Dança do Instituto de Artes do Exército. Nos dois anos seguintes, ganhei vários prêmios nacionais de dança como um artista masculino.
Folha - No balé clássico?
Jen - Não, dançando o estilo chinês clássico. Em 1987, me mudei para Cantão, no sul da China, porque lá existia o primeiro grupo de pesquisa em dança moderna no país, criado com apoio dos EUA.
No ano seguinte, fui enviado pelo governo aos EUA estudar coreografia e dança moderna.
A bolsa era de apenas um ano, mas acabei prorrogando por mais um ano, para ficar em Nova York. Fiquei lá até 1991. Depois passei pela Itália, pela Bélgica e, em 1993, voltei à China.
Folha - Por que você voltou?
Jen - Sentia saudades de casa, dos meus pais, dos meus amigos. E há muitas oportunidades aqui para mim. O desenvolvimento econômico é rápido, mas na área cultural ainda existe um vazio enorme. E também fui a primeira pessoa enviada pela China ao exterior a fim de estudar dança moderna. Por isso, eu achava que tinha uma dívida com o país.
Folha - A operação também não foi um dos motivos?
Jen - É verdade. Eu queria fazer a operação aqui. Eu sei que as técnicas e os equipamentos são mais desenvolvidos no Ocidente, mas eu confio mais nos médicos chineses, na sua habilidade. Eles me passam muita tranquilidade.
E também eu sabia que a operação me daria a sensação de nascer de novo, e eu queria ter essa sensação no meu próprio país. Também queria minha mãe por perto.
Folha - Como seus pais reagiram quando souberam?
Jen - Oh, foram ótimos. Eles disseram que apenas não entendem por que eu tenho que passar por um processo tão doloroso do ponto de vista físico. Disseram: "Você será sempre a nossa criança".
Folha - Quando você decidiu mudar de sexo?
Jen - A decisão não veio de repente. Tinha isso na minha cabeça há muito tempo. Desde pequeno eu achava que devia ter nascido mulher, por causa do meu corpo e das coisas que me atraíam, como brincar de bonecas. Mas foi com 21 anos que eu achei que era melhor mudar de sexo.
Folha - Depois de ter optado, quais foram os passos adotados?
Jen - Aqui não há procedimentos bem organizados, justamente por se tratar de uma operação rara.
No Ocidente, você tem que passar por um acompanhamento de dois anos com um psiquiatra. Aqui é uma bagunça. Primeiro você vai à delegacia para conseguir uma autorização da polícia.
Folha - Por quê?
Jen - É preciso ter um documento mostrando que se tem uma ficha limpa. Você precisa mostrar que é um bom cidadão. Depois vai a um psiquiatra, mas é um exame bem mais simples do que no Ocidente. Cabe então ao psiquiatra dar a permissão para a operação.

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