São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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O teatro da lucidez e do afeto

DENISE STOKLOS

País do futuro seria o país que tem na sua maioria jovens. E que os receberia. O Brasil seria um país novo. Por princípio tal país não seguiria nenhum modelo pronto, mas criaria seu próprio caminho. Todos os grandes momentos de arrancada seriam feitos muitas vezes desafinados, fora do tom ou de foco, a câmera balançando. O importante seria a corajosa afirmação de identidade à custa de muitos manifestos, entre covardes pedradas, violões quebrados e a recusa revoltada dos conservadores.
O tempo estará sempre ao lado da irreverência, provando as teses e os vislumbres do criativo visionário mesmo que ainda verde, mas que audazmente humanista. O mistério da arte é o de apontar para a frente seus cânones, irrelevante o cambaleio do caminho.
A arte brasileira pediria outros estilos, os que fossem fundados em nosso temperamento. Uma arte como a que ainda não existe, mas existirá: pois se acima de tudo seríamos um país jovem, seríamos também um país pobre, injusto e por raras vezes desunido pela fraqueza dos que já estão exauridos pelo desânimo que resulta em agressão bárbara contra seu próprio ser teatral.
Haveria aí então uma quebra de critérios gerando brutalidade contra os que se arriscam na direção teatral, mas deixando ilesos os velhos ditadores, muitos ainda no poder. Criaria ingênuos e burros predadores, assustados com seu próprio vazio, rancor, mesquinhez, covardes inimigos do frágil, da doçura.
Tudo que vibrasse afeto os agrediria. Mas no final seriam essas as únicas ondas que os salvariam, essas do afeto, da humildade e, acima de tudo, do não-abatimento, confiança na estrutura da proposta. Ir em frente com a produção teatral no Brasil sem medo, sem recuo, sempre aperfeiçoando, esse é o nosso papel. Para cada companhia que reza nos moldes, acomodada, haverá outras tantas inquietas Vertigens, Parlapatões, Aerodianas etc.
Tenho estreado minhas peças fora daqui já há mais de oito anos, na Europa e principalmente em Nova York, no La Mama, o dito templo da vanguarda. Sua diretora, Ellen Stewart, recebe produções do mundo inteiro apenas por duas semanas, façam elas sucesso de público e crítica ou não. Seu critério é a proposta artística e não a venda no mercado ou aprovação da mídia. Sua lógica é teatral, não econômica. A produção internacional de um teatro não-comercial terá sempre em mente um público não-regional, aberto a inovações.
Quem transita com seu teatro pelo mundo experimenta as duas faces: no exterior o respeito e a memória já conservada dos feitos, no Brasil a comovente resistência de um público de teatro, lúcido -com alguns infiltrados conservadores sem memória (para confirmar a regra e a exceção).
Neste presente ano resolvi sentir como seria entregar uma organização dramatúrgica ainda bebê no meu país. Bebê porque novo. O que eu faço que chamo de novo? Acredito em um teatro do ator que dispensa técnicas como ato iconoclasta declarado e proclama a primazia do afeto como uma emergência da civilização e em todas as áreas.
Esse teatro tem me levado mundo afora, sempre acumulando mais convites. O afeto, seria esse o trunfo com que nós, pobres latinos, deslumbramos o mundo e recebemos um espaço categorizado e único? Porque é raro na vanguarda internacional a preocupação com o afeto na estética. Há muita tentativa de esfriar, cinematizar o teatro como imediata confusão do que seria uma modernização deste. O brasileiro saberia que teatro é, na sua clássica essência, o simples resultado da presença do ator no palco.
Estreei no Brasil minha mais recente produção, que é uma oferenda de um exercício de abertura ao público. O fundamento nessa peça é elogiar a lucidez das escolhas. Para isso não quis atores profissionais. O espetáculo é extremamente comunicativo com o público jovem e irritante ao conservador, que busca parâmetros, comparações para decifrar e não encontra. E quando assim se tratam as novas gerações, com expectativas das velhas, não se as recebe.
Esse espetáculo é para quem vira o século com noção ecológica da diferenciação -não da pasteurização- como prática imediata da democracia, da expressão da liberdade, da aceitação das novas gerações. Estudo nessa peça como a produção nacional de teatro poderá vir a ser transformada por outros formatos como os dos jovens justamente pela sua não-experiência, amadorismo, pela sua não-contaminação com linguagem técnica que não servia mais.
Me interessei muito em pesquisar essas essências por diferentes fontes. Isso porque o setor profissional está precisando de chacoalhos saudáveis, revolucionários. No momento em que o ator brasileiro deixou-se usualmente submeter à humilhação da telenovela muito de seu afeto pela irreverência perdeu-se nos corredores televisivos da superficialidade e suas técnicas, a serviço dessa futilidade, esvaziaram-se.
Pois como aceitar as regras da divulgação da televisão à custa de imolação do trabalho vertical do ser a que o ator está comprometido por definição: um monitor da reflexão do público há que manter seu espírito permanentemente vitalizado, criterioso, independente, ousado, louco.
Existe possibilidade de realização e, acima de tudo, público interessado em teatro. Se o artista desenha na mídia seu perfil concentrado apenas em seu trabalho, não em ilusória divulgação paralela -notável só para a mídia, não para a divulgação da arte (tipo: presença em matérias sobre a que restaurante vai, em quem votou etc.)-, a construção seria de um público que iria ao teatro para ver teatro e não mitos, modas, nomes.
Por isso insisto: produza, sim, teatro no Brasil. Sou exemplo de profissional que não precisaria apresentar-se mais aqui em virtude de tantas oportunidades fora. Mas esse é o público com o qual compartilho o laboratório de emoções mais primitivas, compartilho a história.
Tenho observado nos diversos festivais de grande nível que as produções internacionais são geralmente efetuadas sob o critério da credibilidade. Apresentada uma intenção de pesquisa e busca particular de um sistema, método, estilo ou linguagem, as companhias estabelecem uma credibilidade que abre uma estabilidade qualitativa, permitindo um espaço amplo para apresentação de suas pesquisas sem cobrança de um resultado imediato na recepção.
No Brasil muitas vezes essas atenções são dadas equivocadamente à conquista de marketing, ao sucesso financeiro como importância artística e largas matérias sobre isso ocupam espaços de arte e não os de economia. Assim, os espaços para a arte, ocupados com economia, deixam de lado tesouros nacionais que nem precisariam fazer mais nada depois de terem contribuído com suas posições éticas e estéticas no avanço de muitas etapas no desenvolvimento da mentalidade nacional.
Figuras como Antonio Abujamra, Antunes Filho, Gianfrancesco Guarnieri, José Celso Martinez Correa, Rubens Correia e tantos outros que contribuíram como fundações, a eles deveria ser dada a paz de conselheiros artísticos vitalícios, seus caminhos facilitados.
A tendência antropofágica algumas vezes provoca o fenômeno perverso de deslocar a retina das confusões ideológicas em um país tão difícil de sobreviver que transforma a ira santa em consumação de seu próprio ser teatral, representado pelo seu par. Cospe-se na cara daqueles que o representam e deixam-se ilesos os seus ofensores que ainda hoje permitem-se no poder, incólumes e até premiados com dinheiro -enquanto a nação permite que escritores como João Silvério Trevisan ameacem suicídio por não poderem pagar o aluguel. O que esse desdém pode produzir?

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