São Paulo, quarta-feira, 25 de outubro de 1995
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Adolescentes sofrem de idiotia profunda

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

No artigo de sexta-feira passada, a propósito do filme "Kids", eu dizia que a Aids entre adolescentes não chega a ser seu tema principal, e o que mais choca o espectador é a falta de perspectivas, o gosto gratuito pela delinquência, a verdadeira lobotomização da juventude nas grandes cidades.
Os adolescentes atuais parecem padecer, com efeito, de uma idiotia profunda. Reflete-se até na dificuldade que eles têm em pronunciar algumas consoantes, num sotaque abobado, gutural, lento, como que curvando as costas e amolecendo o queixo; cada palavra -e são poucas- surge envolta numa bolha de saliva, na qual flutuam, desesperados de perder-se, alguns neurônios valiosos, já que escassos.
Bem, mas tudo isso é bastante injusto. Todo adulto reclama da cretinice dos mais jovens. Há muita inveja em curso. Mais do que inveja, há impaciência. Pois o adulto encara o adolescente como se ele fosse um adulto mais jovem, ou seja, capaz de alcançar, pelo mero vigor físico e pela graça do sexo florescente, toda a sabedoria verdadeira ou falsa, toda a maturidade, autêntica ou fictícia, que o adulto precisou de anos de burradas e de inadaptações para alcançar.
Não, a coisa não é bonita. Tampouco a maturidade é flor que se cheire. Um adolescente percebe muito bem a criancice de seus pais; sua aguçada sensibilidade para o ridículo silencia diante do jogging roxo, da careca, da barriga do paizão.
E talvez a maturidade seja apenas a capacidade que se adquire de perder o senso do ridículo; dá-se a isso o nome de autoconfiança. Atitude na qual se mistura por certo uma sensação de impunidade; o adulto está mais imune a broncas, por maiores os desatinos que faça.
Feita esta reflexão relativista, volto ao tema abordado em "Kids". A adolescência pode sempre ter sido idiota, mas era menos perigosa do que hoje.
O que explica sua inclinação pela droga, pela violência, pela malvadeza? O que explica essas torcidas organizadas de futebol, essas crianças viciadas em crack, esses maníacos do videogame?
Faço ao mesmo tempo um raciocínio conservador e progressista. Acho que os dois se juntam no final.
Começando pelo raciocínio conservador. A delinquência juvenil, a estupidez juvenil, deve-se sobretudo à falta de autoridade. É evidente que toda criança tem, por função específica, testar a autoridade familiar. O teste serve como processo de educação mútua. Dos pais, porque assim reaprendem o caráter irreprimível, imperativo, de alguns impulsos humanos. Das crianças, porque assim aprendem que a vida em sociedade exige a repressão desses mesmos impulsos.
Toda criança exprime a novidade do "sim", enquanto qualquer adulto representa a mesmice do "não". Para resumir o argumento conservador: esses adolescentes criminosos não são reprimidos, e portanto tudo o que fazem é testar até onde vai sua impunidade. Estão procurando a punição, e por isso exageram. Todo moleque que furta doces numa loja ou tenta passar pela catraca do metrô sem ter bilhete está secretamente procurando quem o pegue de boca na botija. Quer encontrar os seus limites, porque senão ficará sem saber até onde crescerá.
E é claro que numa sociedade permissiva, ou melhor, incapaz de reprimir, os adolescentes testarão tudo.
Isto, quanto ao argumento conservador. Passo ao argumento progressista.
O problema é que as sociedades desenvolvidas simplesmente não têm o que fazer com seus jovens. Sua estabilidade econômica depende de um desemprego crônico. O capitalismo desenvolvido cria seus próprios delinquentes, e é irônico que muitos deles, skinheads, neonazistas, façam a apologia da guerra;, pois o capitalismo só soube dar uma resposta à delinquência e ao excesso de população juvenil: mandar moleques para o front, massacrar, exterminar a juventude.
Querem morrer, porque querem matar. Ou não querem matar e mesmo assim acham a vida sem sentido, e enchendo-se de drogas.
Não que a vida tenha "um" sentido, não sei. Mas sei apenas que essa pergunta aparece apenas quando se tem tempo para pensar nela. Um rapaz de dezesseis anos, no sertão do Nordeste ou na Europa medieval, tem responsabilidades a seu cargo que são pesadas, pesadíssimas, e suficientes para eliminar os famosos "desajustes" da adolescência.
Juntando os dois argumentos, conservador e progressista. De um lado, quem desajusta é o capitalismo avançado. De outro, o que desajusta é a permissividade, a ausência de autoritarismo. Se há capitalismo avançado e permissivo, o contrário disso seria um socialismo autoritário. Não chego a tanto. O mais certo seria saber como aproveitar, para benefício da sociedade, os impulsos antiautoritários da juventude. Não exatamente numa política de pleno emprego (nada mais embrutecedor do que o trabalho), e mais numa política de "plena" ocupação (nada mais libertador do que um lazer inteligente).
Mas vejo que estou ficando utópico demais. Só que, enquanto ficamos na mesma, as torcidas e os moleques drogados também ficam na mesma, e o videogame, o skate, a bestice ainda são dos males o menor.

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