São Paulo, quarta-feira, 25 de outubro de 1995
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Tão rindo do quê?

CLÓVIS ROSSI

SÃO PAULO - Pensei que fosse só Fernando Henrique Cardoso que se divertisse com a função de presidente da República. O "affaire" de anteontem entre Boris Ieltsin e Bill Clinton demonstra que deve ser um costume universal achar a maior graça mesmo nas piadas mais sem graça.
Está bem que Ieltsin é chegado a provocar cenas hilariantes (para os não-atingidos), como ocorreu na semana passada com o beliscão inopinado em duas funcionárias.
Bem que Marília Gabriela comentou anteontem que, se é assim em público, imagine-se o que não ocorre quando se fecham as portas de seu gabinete no Kremlin.
Assim que a moda dos processos por assédio sexual chegar à Rússia (e vai chegar, pode crer, como chegaram o MacDonald's e todas as demais quinquilharias hoje transformadas em totens do "american way of life"), Ieltsin não resistirá um mês no poder.
Mas, pelo menos, o beliscão tinha lá sua graça pelo inesperado, o que qualquer artista de circo aprende no primeiro dia de aula. Agora, a piadinha sobre a imprensa, convenhamos, provocaria, nos mortais comuns, um mero e fugaz risinho, mais de afago no convidado do que propriamente de graça.
E não é reação corporativa, não. Conheço um monte de piadinhas sobre a imprensa e sobre jornalistas que realmente fazem rir e representam merecido castigo aos inúmeros defeitos dessa raça.
Mas dobrar-se de rir, até chorar, só porque Ieltsin disse que a imprensa é "um desastre" ficou ridículo, profundamente ridículo.
Freud talvez explique. Clinton deve achar a mesma coisa, mas o ambiente do politicamente correto que o cerca o impede de usar a rude franqueza de seu colega russo. Acho até que, se estivessem na mesma sala todos os cento e tantos convidados para a festa dos 50 anos da ONU, Ieltsin sairia carregado em triunfo.
Nesse ritmo, David Letterman, Jô Soares e o pessoal do Casseta e Planeta estão com o emprego garantido pelo resto da vida.
Afinal, são de fato engraçados, ao passo que Clinton, Ieltsin e cia. conseguem ser apenas patéticos, mesmo que se desconsidere o fato de que são pagos para governar, de preferência bem, e não para se divertir com besteiras.

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