São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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Nossa Senhora de ninguém

MARILENE FELINTO

Quando cartomantes, quiromantes, profetas, espíritas, a santa de Coqueiros ou o padre Cícero estão em evidência, os jornais aumentam a tiragem, observava o escritor Graciliano Ramos, nos anos 30. "Lemos as notícias, bocejamos, sentimos desgosto. Realmente o povo é supersticioso. Pensando assim, afastamos por um momento as nossas superstições, censuramos com azedume as superstições alheias."
É preciso mesmo paciência (ou muita fé religiosa?) para levar a sério a pendência entre católicos e evangélicos da Igreja Universal do Reino de Deus. De pretensa guerra entre credos, o episódio virou campanha publicitária em que ambas, Igreja Católica e Universal do Reino de Deus, saem vitoriosas: ganharam propaganda gratuita nos horários nobres da televisão e nas manchetes dos jornais.
Difícil dizer se o bispo Sérgio Von Helder, da Igreja Universal do Reino de Deus, que chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida na televisão, tem mais de picareta do que de fanático. No entanto, a violenta demonstração pública de intolerância, o nome de origem germânica e seu passado militar (é militar reformado) transformam a pessoa do bispo numa espécie de símbolo torto, e bem brasileiro, do neonazismo.
Aliás, não poderia ser menos brasileiro o fenômeno de uma igreja como a Universal, baseada na exploração financeira da fé de milhões de desavisados. Pelo contrário: o Brasil cede todo um canal de televisão, a TV Record de São Paulo, para que o abuso se difunda alto e bom som.
Mas quem já vivenciou qualquer das ramificações do protestantismo entende o desprezo dos evangélicos pelas imagens. Não é à toa que os protestantes são chamados de "crentes" em muitos lugares do país. Não reconhecem os santos nem cultuam as imagens. A fé protestante -por abdicar de mediações mais concretas como as imagens de santos ou os despachos do candomblé- parece mais arraigada ou verdadeira do que a dos demais religiosos.
De fato, como a religião propõe a veneração de Deus, ela vê Deus como pessoa. A invocação de imagens pelo catolicismo, bem como os ebós do candomblé têm um pouco dos processos da magia e da feitiçaria: pretendem subjugar a entidade superior através de exorcismos, para colocá-la a serviço do homem. O protestante, por sua vez, se submete à potência superior exclusivamente através da súplica, da oração.
Como filha de protestantes, eu admirava na infância a liturgia católica de belas imagens, mantos, vinho e festas pagãs, como o Carnaval ou os pastoris que me eram proibidos. Experimentei em segredo uma hóstia, o alegado corpo de Cristo que as crianças católicas comiam.
Os crentes indignavam-se também diante dos trabalhos dos xangozeiros nas encruzilhadas do caminho da igreja: os mais jovens destruíam a pontapés o arranjo de galinhas pretas, garrafas de cachaça e velas.
Difícil ver algo de espiritual no cheiro do ebó ou na hóstia insossa. Mas também a esperta loquacidade dos pastores protestantes não convencia: esfarelava-se a caminho do céu como se espatifa hoje na tela da TV. Bocejos. Aos descrentes, como dizia Graciliano Ramos na época da proliferação do automóvel, resta-nos voltar a nossos deuses imateriais. Afinal, "é necessário que alguém nos salve, a Divina Providência ou Henri Ford."

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