São Paulo, segunda-feira, 30 de outubro de 1995
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Vida real brasileira tem novos personagens

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Alguma coisa aconteceu com os personagens no Brasil. Há sempre o presidente sorrindo, sua mulher caindo, um político de bigode, outro sem bigode, entrevistados de plantão nas enquetes de rotina. Você acha que o romantismo ainda tem espaço, homem beija homem, deve-se proibir o cigarro até nas tabacarias?
Trio mais que elétrico, entrou como um vendaval sacudindo a poltrona de nossas salas. O sequestrador com o revólver no peito de uma menina asmática, Mirândola com um imenso chapéu e o pastor agarrado na sua santa, selando com um pontapé o eterno enlace -o pastor e a santa, o pastor que chutou a santa, a santa que chutou o pastor para outro continente.
A polícia é burra. Mirândola não disse isso. Apenas sugeriu. Como iria, ao mesmo tempo, avisar que viria uma bomba e enviar a bomba? Como poderia se disfarçar com aquele chapéu?
Mas foi o jovem sequestrador goiano que disse: "A polícia é burra". E daí? O presidente não tinha dito que a esquerda é burra?
Afirmações levianas. Não levam em conta que na década de 50 um Prêmio Nobel de Medicina saiu para a civilização luso-brasileira, na pessoa de um médico português que foi o precursor da lobotomia.
Não somos burros. Talvez um pouco entusiasmados, é só. Antenas do tamanho de uma pizza grande vão captar todas as imagens do mundo. Mirândola com seu chapéu imenso é um araponga cósmico, sabe quem vai explodir quem, que bomba-relógio de ponto mandará pelos ares funcionário, café e repartição.
Os três estiveram juntos nesse eletroespaço nacional. Mirândola com as mãos no rosto, horrorizado diante de suas visões apocalípticas. O almoxarifado não, murmura desolado na sala escura, enquanto rolos de fumaça e poeira se desprendem do seu chapéu.
O sequestrador afasta o cano do peito ofegante da menina e grita para policiais e repórteres: "Um nebulizador, um nebulizador".
Von Helder contempla a santa na penumbra do estúdio. Como esperou um milagre. Milagre da promoção no Exército, milagre do pão, do vinho e das rosas, milagre da tesão doméstica, milagre do cheque especial. Nada.
"Olha, seu delegado, vou deixar essa menina por aqui porque não aguento mais esse jeito de arfar, esse afogamento em seco. Quem for policial, que me siga, vou percorrer de carro os caminhos de Lampião, sem Maria Bonita, sem Corisco, sozinho na estrada."
Trespassado por uma nova visão, Mirândola corre para a janela. Ele, que perguntou aos espíritos sobre plano de carreira, biênios e promoções, acabou tendo acesso a uma das mais terríveis revelações do fim de século:
"Petardos explodirão nos escaninhos. Condenados à morte foram todos os oficiais de chancelaria e ministros de segunda classe".
O sequestrador vaga pela caatinga dando entrevistas às emissoras de rádio. Cada manhã uma entrevista. Cansado de buscar um patrocinador, resolve se entregar. A polícia é burra, mas tem salário fixo, comida na hora, cama e um chuveiro.
Inocentado, Mirândola viaja para uma cidade do interior e monta uma pequena firma de astrologia que trabalha com reembolso postal.
Assentados Mirândola e o sequestrador, cabe a Von Helder, o pastor que chutou a santa porque ela não funcionava, cumprir sua penitência.
Percorre o país com uma cruz especial, que marca os quilômetros e o tempo de percurso. Ainda tem agenda e alguns jogos.
Cenas da vida real: o presidente continua rindo, os políticos com ou sem bigodes se perguntam se água mole em cláusula pétrea tanto bate até que fura, adoradores de imagem se confrontam com adoradores do bezerro de ouro, lutadores "full contact" andam ao lado da estrela da TV sem se tocarem, adoradores de jazz se ajoelham diante de Stevie Wonder e eu rendo minha homenagem ao cronista Van Jafa, que escrevia assim e talvez tenha razão, pois assim transcorrem as semanas no trópico.

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