São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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As próximas vítimas

MARCELO LEITE

O Brasil é um país mais sério do que Charles de Gaulle poderia imaginar, mas não deixa de ser engraçado. Curioso, melhor dizendo. Aqui, pessoas letradas perdem tempo discutindo quem é o "serial killer" de mais uma novela das oito, mas poucos se importam com descobrir quem matou quem em Corumbiara ou no Carandiru, para ficar em dois nomes sonoramente brasileiros.
Repete-se assim, com menos "glamour" e mais cadáveres, o Natal de 1988. Há sete anos, a opinião pública daqui só se preocupava com o assassino de Odete Roitmann, quando o mundo queria saber quem tinha matado Chico Mendes.
Nesta terra, uma das ocupações preferidas da classe média alta e dos ricos é falar mal da "elite". Dito de outro modo, daqueles entre seus pares que não têm consciência social, seja lá o que isso queira dizer. Nem se dão conta de que todos, juntos, começaram a achar chique contribuir para a campanha do Betinho, para, logo em seguida, ainda como rebanho, descartá-la como chatice.
Elite somos todos, inclusive juízes, jornalistas, fazendeiros. Alguns até criticam a Justiça flagrantemente enviesada que encarcera líderes dos sem-terra, mas em cada um vegeta a noção ancestral de que é normal e até compreensível prender essa gente pobre, feia, ameaçadora. Organizada.
Esta é a terra em que a tortura -como mostrou a revista "Veja" em excelente reportagem de capa- e a delação são os principais instrumentos de investigação policial. E assim vai permanecer enquanto se considerar normal publicar a imagem de uma moça algemada, que foi presa em casa e não opôs resistência. Um juiz obscuro decretou, a polícia truculenta prendeu e humilhou, a imprensa oportunista registrou e multiplicou.
Entenda bem: não defendo que jornais, revistas e a TV renunciem a divulgar a imagem. Seria sonegação de informação ao público. A cena armada pela polícia, abusivamente, tornou-se um fato incontornável da esfera pública.
A imprensa, porém, não precisa ser um ator inerte nesse drama de mau gosto. É preciso reagir contra essa e todas as outras violências, questionar, criticar, inquirir. Não só filmar e fotografar a vítima, mas perguntar: por que as algemas?
Como já disse aqui, e não me canso de repetir, é nos detalhes que se esconde o demônio.
Ordem jurídica
O que diferencia a imprensa de outras instituições é que ela, ao menos parte dela, é mais aberta a críticas e a aperfeiçoar seu próprios procedimentos. Não por benevolência de proprietários e editores, mas porque a transparência e a capacidade de aprender são hoje condições de sobrevivência no mercado.
No dia em que a foto da líder sem-terra algemada aparecia nas capas de muitos jornais, terça-feira, apontei a falta de questionamento para essa violência em minha crítica interna da edição. No dia seguinte, a Folha criticava a prisão e o detalhe das algemas no editorial "Grande engano", além de trazer na prestigiada seção Tendências/Debates artigo de Frei Betto e quatro cartas no Painel do Leitor contra a medida.
Na mesma edição, o jornal trazia uma contundente charge de Angeli (veja reprodução acima). Na pág. 1-8, uma reportagem descia às minúcias jurídicas da prisão e mostrava, entre outros detalhes constrangedores, que o juiz -de apenas 27 anos- teria confundido artigos do Código Penal e do Código de Processo Penal.
Na mesma quarta-feira, "O Estado de S.Paulo", concorrente direto da Folha, criticava em seu primeiro editorial a reação quase consensual contra a desastrada ordem do juiz. "São poucos os que se dispõem a sair em defesa da ordem jurídica, frontalmente agredida pelas invasões", pontificou.
Em outras palavras, os conflitos no campo não são um problema social, mas -desde sempre- um caso de polícia.
Milagre inquestionável
Relutei longamente antes de abordar o caso Rede Globo X Igreja Universal do Reino de Deus. Agora que a poeira baixou, gostaria de apresentar algumas opiniões sobre essa "guerra ridícula", que de santa nada teve.
O pastor Sérgio von Helder (ou "Von Helde", como sustenta a revista "Veja") terminou crucificado por toda a imprensa, sob a batuta da Globo. A cena que ele protagonizou com a imagem -a imagem, note bem- de Nossa Senhora Aparecida era apenas patética, além de canastrona.
Aqueles chutinhos desajeitados com a lateral do sapato e os socos pouco convincentes despertaram-me somente um constrangimento similar ao experimentado com cenas dramáticas de novelas mexicanas. Não se fazem mais iconoclastas como antigamente.
Von Helder foi vítima do seu excesso de literalidade televisiva. Pela repetição exaustiva, a Globo conseguiu transformar uma performance pífia em crime de lesa-divindade.
O que não se deve perder de vista, em meio a tanta baboseira e palavras compungidas de Cid Moreira, é que a primeira pedra partiu da Globo. E de uma forma melíflua, dissimulada, não-assumida, com a minissérie "Decadência".
A atitude pusilânime de esconder-se por trás da ficção foi derrubada por reportagem da Folha, na qual se revelou que falas inteiras do pastor global tinham sido chupadas de uma entrevista do bispo universalista Edir Macedo à "Veja". Outro bom momento do jornal foi o caderno especial "Guerra Santa", uma tentativa esforçada de lançar mais luz do que calor sobre o debate.
A Igreja Universal só incomoda porque cresce a olhos vistos e porque se apóia em uma emissora de TV. Não fosse sua capacidade de satisfazer eficientemente uma demanda ignorada pelo catolicismo balofo, jamais preocuparia o cardinalato carioca.
O único milagre comprovável de Von Helder e trupe, esses mascates da fé pós-moderna, foi ressuscitar uma igreja que entrou em coma profundo depois de debelar o delírio da Teologia da Libertação.
Delação institucionalizada
Os jornais de São Paulo ainda não deram a devida atenção para outro fenômeno do Rio de Janeiro, o Disque-Denúncia. Trata-se de um número de telefone para denúncias anônimas com o objetivo de ajudar o trabalho da polícia. Dois sequestros, dos muitos em andamento na antiga capital federal, foram interrompidos graças a esse serviço.
Depois da fracassada militarização da questão criminal, essa iniciativa conjunta de governo e empresas surge como a nova panacéia contra o câncer do banditismo. À parte as dúvidas éticas que possam surgir do recurso massificado à delação, o fato é que o Disque-Denúncia está recebendo milhares de informações.
Para o mal ou para o bem, foi a solução que a sociedade fluminense idealizou para a ameaça sempre presente dos morros. Os paulistas, exilados em condomínios, ainda se acreditam distantes das suas chacinas regulares e monótonas. Poderão acabar tendo de importar tecnologia do Rio, por isso é recomendável que seus jornais passem a informar o que, afinal, está acontecendo por lá.

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