São Paulo, terça-feira, 7 de novembro de 1995
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Os sequestradores querem modernizar o Rio

ARNALDO JABOR

Da Equipe de Articulistas N inguém sabe em São Paulo, no Sul, no Norte, mas o Rio de Janeiro está passando por uma revolução. Os últimos sequestros têm mil e uma utilidades. Estão mostrando o desenho real de nossas relações sociais. Estamos descobrindo que somos um quebra-cabeças com as peças trocadas. Onde estava o certo, está o errado, onde estava a lei está o crime.
Aqui vão sete descobertas:
1 - Não dá para pensar mais em Bem de um lado e Mal do outro. É um misto-quente. Bandido-polícia, polícia-bandido, sequestro-drogas, polícia mineira-polícia montada, polícia da polícia. A frase de Lucio Flavio Lirio não tem mais sentido: "bandido é bandido, polícia é polícia".
Desde o tempo de "Memórias de um Sargento de Milícias", desde o tempo do Rei, que o drama do Rio é um labirinto, com razões tortas, barracos pendurados na mente. O Rio é uma favela psicológica. Como diz Antonio Candido no célebre ensaio "Dialética da Malandragem": "Ordem e desordem se articulam solidamente. (...) somos uma espécie de terra-de-ninguém moral, onde a transgressão é apenas um matiz na gama que vai da norma ao crime". As coisas estão mais superpostas ainda, só que acabou a doce convivência de contrários barrocos do Rio antigo. Éramos uma ópera buja; hoje somos uma tragédia buja. A ordem é desorganizada e a desordem organizada. Há muito mais favelas que pensávamos. Crescem. Há hoje morros como o Morro do Guarabu, o lírico e pop Morro do Boogie Woogie. O Rio está virando ficção científica. Há pessoas se sequestrando a si mesmo, dando golpe em familiares, há sequestros falsos, há oito sequestrados ocultos hoje no Rio. Há algum tempo, um grupo policial tinha "mineirado" um traficante e estava exigindo uma grana muito alta para soltá-lo. Os traficantes indignados foram à polícia reclamar. O outro grupo policial cobrou mais barato, embolsou o prêmio e destruiu os outros policiais, soltando o traficante. Belo filme.
2) O Disque Denúncia é um momento novo. É a mais óbvia e importante descoberta: os pobres podem ajudar. Pela primeira vez no Brasil, esperamos telefonemas do povo. Pelo Disque Denúncia, descobrimos que os pobres existem. Descoberta luminosa: sem a cooperação das favelas, a cidade não se salva. Sem a ajuda dos pardos, os brancos dançam. Temos de nos relacionar com a miséria; precisamos dela. A miséria não quer ser ignorada. Os sequestros são a forma violenta deste desejo. É preciso conhecer o mundo pardo da empregada.
O Disque-Denúncia é uma revolução solidária. Mas, não pode ser apenas um canal de alcaguetes. Tem de ser em mão dupla. Que vamos dar em troca ao mundo pardo? Que vamos responder ao telefone?
3) Diz o chefe de polícia Helio Luz, ele próprio uma simbiose visual "hippie-polícia": "No mundo marginal tudo se sabe". Ibrahim Sued dizia: "Em sociedade tudo se sabe". Hoje, no mundo -Zona Sul, com seus caretas compartimentados, seus higiênicos vizinhos, não há vasos comunicantes. Ninguém sabe nada. Sensação de otários subindo o morro.
4) Acabou o tempo da Polícia como corporação isolada. Polícia não é, digamos, o Corpo de Bombeiros. Não dá para atacar um problema "blade runner com métodos positivistas. Uma das razões das derrotas durante a guerra de Canudos, foi que o Exército se recusava a abandonar a formação francesa clássica de ataque. Os fanáticos eram soltos, o Exército amarrado. Os sequestradores são guerrilheiros, a polícia é fechada. Os sequestros já estão "terceirizados": uns assaltam, outros encarceram, aqueloutros negociam.
Os sequestradores estão querendo nos modernizar. É preciso "privatizar" os processos. O antigo poder político não funciona mais. O Poder político hoje é um parafuso espanado que não gira mais a "porca" da vida social (apud Matinas Suzuki).
Este impasse no Rio é um bom exemplo do que o país precisa em outras áreas: os problemas são antigos e as soluções também.
As famílias aspiram a uma "normalidade". Acabou. Pelos antigos processos, o Rio é insolúvel. Temos de pensar o "insolúvel".
5) É espantoso o despreparo do "bem" contra o "mal". À radicalidade da violência, só sabemos responder com nosso escândalo. Não cessamos de nos considerar "vítimas do Mal", como se fôssemos bons. Achamos que o mal atrapalha a "naturalidade" do nosso mundo. Estamos descobrindo que há outras "naturalidades". Para o sequestrador tudo é natural.
Não queremos reconhecer a luta de classes. Contra a violência, só temos sentimentos simbólicos: lágrimas de mães, correntes de orações, passeatas da Paz.
Jean Baudrillard diz num livro seu que no mundo atual todos querem ser o Bem. Só o terrorista, no caso os iranianos, têm a coragem de ser o mal. Isto dá a eles uma superioridade total contra nossos "direitos humanos". O Ocidente quer ter o luxo de ser o Bem. O Oriente não tem esta pretensão. Somos reféns de nossas boas consciências.
A violência parda está fazendo a crítica prática da sentimentalidade branca. A visão puramente familial da vida cotidiana acabou. Precisamos de uma visão mais pública, comunitária da existência. Estamos descobrindo que somos uma sociedade, pela descoberta do crime. Só o medo do crime ilumina nosso conformismo.
Lembrem-se que o escândalo do Orçamento foi denunciado por um assassino, o Alves dos Santos, que deu origem as CPI's da corrupção. A família e a felicidade não explicam tudo.
6) Descobrimos que os sequestros são um sucesso. Apesar da atual comoção pública no Rio de Janeiro, 56% dos sequestradores se deram bem nos negócios e faturaram lucros bem animadores. A atividade tende a crescer.
7) Já os policiais se dão mal. Além de desarmados e abandonados, ganham muito mal. A sociedade tem de proteger a polícia. A polícia tem de ser bem tratada. Mas, por nossa tradição de degredados e criminosos coloniais, temos o medo da polícia. Acabamos esquecendo-a.
Última descoberta: o Capitão Weber, que salvou os dois últimos sequestrados só ganha R$ 1.000 por mês. Nosso herói ganha mal.

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