São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
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O herói se lança em águas desconhecidas

ALBERTO HELENA JR.
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Um truque de cronista, que aprendi com Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, é o de, na falta de um mote, buscar no dicionário os significados da palavra-chave de um texto. Aí, tcham!, a crônica vem. Mas quebrei a cara: o "Aurélio" não registra Amaral, o herói de plantão.
Com preguiça de ir à cata do dicionário de nomes próprios, fico com a aproximação, certamente como era chamado seu velho no interior: "seu Amarar". Isso vem de amaro, amargo, amargura, sentimento que costuma verter lágrimas, gotas salgadas como as do mar. E, se amargura não combina com o valente, ágil e múltiplo Amaral, lançar-se ao mar, aventurar-se em águas desconhecidas, como bem adverte o "Aurélio", já diz algo a respeito do nosso intrépido volante.
Isso porque, depois da vitória sobre o Bahia, no dia seguinte à exibição impecável no 1 a 0 contra a Argentina, naquele seu jeitão simples e direto, enfunava as velas: "Todo mundo pensa que eu só sei marcar atrás. Nada disso. Quero me mandar pra frente também, pois sei também tocar a bola. Você não viu o passe que dei pro Donizeti, no gol do Brasil?".
Vi, sim, e fiquei comovido, encantado com a jogada. Não só pelo empenho e pela precisão da assistência, mas, também, pela calma do outro menino-herói do jogo de quarta-feira: o atacante botafoguense Donizeti, autor de um gol de veterano de alta classe. Aliás, Donizeti dividiu com Amaral as honras da partida, deixando para Rivaldo o brilho nos 20 minutos finais de um confronto histórico.
Mas, afinal, o que deu nesses dois, duas cartas fora do baralho até a véspera?
Posso dizer? Então, digo: foi Zagallo. Não a proverbial estrela de Zagallo, mas a experiência, a manha, o bom senso de Zagallo, que, ao se ver desprovido de seus maiores talentos, teve o juízo de montar os setores do time de acordo com o entendimento que os respectivos jogadores tinham em seus clubes de origem.
Assim, tendo como base de meio-campo o Palmeiras, com a dupla de volantes Flávio Conceição e Amaral apoiada pelos laterais Cafu e Roberto Carlos (deixou o Parque outro dia), mais Rivaldo, como o terceiro homem de Carol Reed, aquele que só aparece para causar frisson, completou a receita com o duo atacante do Botafogo -Donizeti e Túlio.
Há, porém, algo mais em comum entre Amaral e Donizeti: a gana, o sentimento de entrega, aquela capacidade de concentração no jogo, como uma vozinha dizendo ao ouvido de ambos que não há bola perdida. E é nessa zona que eles se encontraram na gloriosa noite de quarta, quando quebramos um tabu de 19 anos.
Ah, sim, estou perdendo o fio da meada, perdendo o instante em que Amaral quer levantar âncora, içar velas e partir em frente, rumo ao desconhecido. Que posso dizer? Vá, meu filho, mas cuidado, pois as palavras são veneno. E está lá, no mesmo "Aurélio", um dos significados do termo craque, do inglês "crash": "o ato de quebrar-se com ruído ou desmoronar-se com estrondo".

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