São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

José Paulo Paes defende o "direito à desinformação"

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Aos 69 anos, José Paulo Paes é um dos mais ativos e versáteis intelectuais brasileiros.
Durante este ano lançou, até agora, quatro livros, por quatro editoras diferentes: "A Poesia de Seféris" (Nova Alexandria), "Poemas da Antologia Grega ou Palatina" (Companhia das Letras), "Transleituras" (Ática) e uma seleção de canções infantis traduzidas do inglês (Companhia das Letrinhas).
Além disso tudo, tem um livro de poemas pronto para ser lançado pela editora Noa Noa -títulos possíveis: "15 Poemas Desgarrados" ou "A Meu Esmo"- e prepara a tradução dos poemas do exílio do latino Ovídio.
Autodidata, Paes trabalhou como técnico em química num laboratório e como editor antes de se dedicar exclusivamente à literatura, há 12 anos.
Nesta entrevista, concedida na tranquila casa em que vive com a mulher, Dora, há mais de 40 anos, no bairro de Santo Amaro (região sul de São Paulo), ele passou em revista sua atividade de poeta e tradutor e falou de literatura, política, jornalismo, Drummond, Oswald, concretismo e alucinações.

Folha - Há cinco anos o sr. publicou um ensaio de grande repercussão intitulado "Para uma Literatura Brasileira de Entretenimento". De lá para cá, a situação mudou?
José Paulo Paes - Curiosamente, mudou. Quando o artigo saiu, amigos meus, intelectuais, acharam que eu estava malhando em ferro frio. Segundo eles, não tinha razão de ser, a essa altura, propugnar uma literatura de entretenimento, quando temos autores como Jorge Amado e mesmo Rubem Fonseca que conquistaram um público vasto. Mas eles não entenderam a proposta do artigo. Eu não estava discutindo um problema de marketing, mas sim um problema de qualificação literária.
Folha - Como assim?
Paes - Existe uma literatura de proposta e uma literatura de entretenimento. Essa literatura de proposta, apesar da diluição dos gêneros que é típica da modernidade, tem gêneros definidos: ela pode ser prosa de ficção, pode ser poesia, pode ser teatro. A literatura de entretenimento também tem os seus gêneros. Pode ser literatura infantil, de aventura, policial, fantástica. O que está em questão não é bem a quantidade de leitores, mas sim o tipo de entretenimento que se oferece a eles.
O que tem havido no Brasil é que há mais letrados do que escritores propriamente ditos. O letrado é que se dedica às letras e aufere prestígio social dessa atividade. O escritor é aquele que escreve para se afirmar profissionalmente e para subsistir. O escritor só pode subsistir como escritor à medida que ele tem um público.
E a literatura de entretenimento é exatamente esse tipo de literatura que pode propiciar ao escritor esse público capaz de mantê-lo. Portanto é uma literatura cujos objetivos são diferentes dos da literatura de proposta. Esta almeja, ao fim e ao cabo, se inscrever na história literária, enquanto a literatura de entretenimento, como o jornalismo, pertence ao momento, embora alguns autores de entretenimento possam eventualmente entrar para a história literária.
Folha - Mas voltemos à literatura brasileira de entretenimento. Em que a situação mudou?
Paes - Você vê: agora estão lançando o livro do Jô Soares, que é um romance policial.
Folha - Mas um livro como esse, de uma estrela da mídia que capitaliza seu sucesso em outras áreas para atrair leitores, não é diferente da literatura de entretenimento praticada por um profissional como Marcos Rey, por exemplo?
Paes - Acho que sim. A diferença é que o Marcos Rey é do ramo, e o Jô Soares não exatamente, embora seja talentoso e de uma inteligência brilhante. É curioso que ele tenha escrito um romance policial, um gênero que no Brasil não conseguiu criar raízes, embora tenha tido alguns bons escritores.
Folha - O fato de uma estrela da música ou da TV lançar um livro, e esse livro vender muito por causa da imagem do autor, ajuda ou prejudica a criação de um público para a literatura?
Paes - Acho que isso atinge um público que normalmente não consome livro. E esse público vai sempre procurar esse tipo de lixo cultural. Vai ler os best sellers que a Record publica, de Danielle Steel, esses lixos.
Folha - Isso não tem a ver com a literatura de entretenimento?
Paes - Não. A literatura de entretenimento exige que o escritor seja competente dentro de seu gênero. A literatura de proposta exige que ele seja inventor, senão não seria uma literatura de proposta, mas de diluição de proposta. Na literatura de entretenimento, a margem de invenção é menor, porque o autor lida com mais convenções, com uma certa tradição que costuma ser respeitada. A inovação, quando há, deve ser discreta para não perturbar os hábitos digestivos do leitor.
E eu vejo que há agora mais gente tentando uma literatura desse tipo. Antes, todo escritor queria entrar para a Academia Brasileira de Letras e figurar nos dicionários de história literária. Hoje já há autores que se preocupam em chegar ao público.
A ficção científica já tem alguns bons autores. A literatura infantil, embora tenha publicado muito lixo nos últimos anos, também tem bons escritores. O caso do Marcos Rey é interessante. Ele faz um tipo de ficção policial para jovens que me parece muito bem logrado.
Folha - O sr. acha que a literatura esotérica e a de auto-ajuda ocupa a brecha deixada pela falta de uma literatura de entretenimento mais consistente?
Paes - Acho que sim. Na realidade, esses livros de auto-ajuda são ficção disfarçada. Durante a leitura desses livros, que dizem que você pode conquistar o sucesso se tiver força de vontade, você se sente de fato um homem bem-sucedido. Quando acaba a leitura, você cai na real novamente. É ficção isso. Ele cria a ficção do sucesso, que dura o tempo da leitura. É uma literatura de entretenimento, também, mas pretensiosa, porque deliberadamente confunde a cabeça do leitor. Oferece coisas imaginárias fingindo estar oferecendo coisas pragmáticas.
Folha - O sucesso das biografias também indica uma demanda grande por narrativas, não?
Paes - Sim. Eu costumo dizer que a prosa de ficção é o lugar por excelência da representação literária do outro. O que você vai buscar no romance é a outridade. Acho que a apetência pela ficção vem de um instinto profundamente implantado no homem, que é o interesse pela vida alheia, como se a sua vida não bastasse e você precisasse viver vicariamente outras vidas. Por meio disso você amplia a sua humanidade. Por meio da ficção, você pode aprender aquilo que Ortega y Gasset chamava de "psicologia dos espíritos possíveis". E essas biografias acabam suprindo isso também, porque na realidade são em grande parte biografias romanceadas.
Folha - Você saudou a estréia tardia de Francisco Dantas, com "Coivara da Memória", como uma prosa de ficção na contramão das modas literárias. O que mais você viu surgir nos últimos tempos na ficção brasileira que seja digno de nota?
Paes - Eu acompanho pouco a produção. Ela é tão grande, e eu já estou quase com 70 anos, de modo que quero aproveitar o tempo para ler os livros que sempre quis ler, ou reler os que sempre quis reler. Recentemente, li o livro do Cadão Volpato ("Ronda Noturna") e achei interessante, muito bem escrito. Li também o livro do João Silvério Trevisan, "Ana em Veneza", do qual eu gostei muito. É um livro bem escrito, exuberante, com exceção do capítulo final, que eu acho um desastre.
Folha - No livro "Transleituras" se explicita, desde o título, uma proposta sempre presente em seu trabalho de ensaísta, a de traçar pontes, às vezes inesperadas, entre autores, leituras, gêneros, meios de expressão...
Paes - Eu acho que o espaço para o que eu chamo de ensaio ameno, o ensaio de leitura mais prazerosa -que é o ensaio que sem abrir mão do rigor dos conceitos saiba escolher uma linguagem adequada para chegar ao leitor-, o espaço para esse ensaio já não existe, porque a nossa imprensa, cada vez mais rasteira e pragmaticamente, foi eliminando os suplementos literários, a única via de acesso do ensaísta ao público.
O que desde sempre eu tentei fazer, mas particularmente nesse livro, que reúne colaborações minhas na imprensa nos últimos quatro anos, foi fazer textos numa linguagem acessível, mas tratando com um certo nível cultural aspectos que me parecem relevantes, procurando traçar os nexos entre a leitura do momento e um cabedal anterior de leituras.

Texto Anterior: Oscar Niemeyer doa projeto a negros
Próximo Texto: José Paulo Paes defende o "direito à desinformação"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.