São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
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José Paulo Paes defende o "direito à desinformação"

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Folha - Seu aprendizado de línguas se deu na idade adulta?
Paes - Não, começou antes. Porque, quando eu comecei a me interessar pela grande literatura, boa parte dela não existia em português, então eu comecei a aprender outras línguas para ter acesso a ela. Comecei pelo espanhol, depois passei para o francês, por causa de uma carta do Carlos Drummond de Andrade.
Eu mandei a ele meu primeiro livro, "O Aluno", e ele me escreveu uma carta amistosa, mas severa. Dizia que eu tinha um certo desembaraço na prática do verso livre, mas que ele me achava muito influenciado pelos poetas brasileiros. E dizia que eu tinha que descobrir a mim mesmo. Me recomendou, então, que lesse poetas de outras línguas porque seriam mais universais do que os da minha própria língua. E mesmo que exercessem influência sobre mim, já seria uma influência refratada pelo meu próprio idioma, não seria mais uma imitação rasteira.
Espicaçado por essa carta do Drummond, eu me pus a estudar línguas. Depois do espanhol, o francês, depois o inglês, bem mais tarde o alemão... O grego eu comecei a aprender já na idade madura. Comecei aprendendo grego moderno para poder traduzir o Kaváfis, e do grego moderno passei para o grego antigo...
Folha - Na carta de Drummond ele dizia que o sr. era muito influenciado por poetas brasileiros. Que poetas eram esses?
Paes - Em primeiro lugar o próprio Drummond. Meu livro se chamava "O Aluno" (1947) justamente por isso. Eu reconhecia que estava sendo influenciado por ele. Mas havia um poema que se chamava "Muriliana", outro que se chamava "Drummondiana", outro que se chamava "O Engenheiro".
No segundo livro, "Cúmplices" (1951), eu já tinha mais consciência de que devia lutar contra essas influências para conquistar uma voz própria, o que acredito ter alcançado a partir de "Novas Cartas Chilenas" (1954).
Folha - O sr. podia falar um pouco sobre a evolução da sua própria poesia?
Paes - Posso dizer que comecei com duas influências seminais que me acompanharam pela vida toda: Drummond, que me deu a lição do humor, e Bandeira, que me deu a lição do cotidiano, que a poesia não vem do "au delà", mas está aqui a cada momento.
Meu primeiro livro era de aprendizado dos primeiros passos da dicção modernista. Outra fase foi a das "Novas Cartas Chilenas", que data da minha amizade com Oswald de Andrade. Ele me chamava de "rapazinho pretensioso", eu o chamava de "velho Piaga", mas foi uma convivência muito estimulante para mim. "Novas Cartas Chilenas" era uma espécie de retomada da poesia pau-brasil, mas procurando resgatar a história brasileira daquele ludismo infantilóide em que se compraziam os modernistas.
Daí eu passei então para o que eu chamo de epigramas, em que a visada sai da circunstância brasileira e se torna mais universal. É uma poesia que eu não diria nem política, nem social, mas de consciência ideológica.
Depois, entrei em contato com a poesia concreta, da qual eu aproveitei os recursos que me pareciam mais adequados a radicalizar uma proposta que já havia em mim e que já estava por exemplo nas "Novas Cartas Chilenas".
Folha - Sua afinidade com os concretos só ia até certo ponto.
Paes - Sim, mesmo porque na minha formação poética nem Mallarmé, nem Pound exerceram influência central, embora eu goste deles e os admire. Meu negócio era mais com o Brecht, o Éluard, o próprio Baudelaire.
Bem, mas depois dessa fase, que vai até "A Poesia Está Morta, Mas Eu Juro que Não Fui Eu", resolvi me desligar e partir para uma dicção mais ampla. Em "A Poesia Está Morta" eu dou adeus à poesia mais visual e parto para uma poesia de fôlego mais largo. Isso iria se afirmar no meu último livro, "Prosas", que também, de certa forma, era um título irônico: como o anterior se chamava "A Poesia Está Morta", o seguinte só podia se chamar "Prosas".
Este último livro já é de poemas rememorativos, em que eu evoco figuras familiares da minha infância, mais ou menos naquela linha em que William Carlos Williams trabalhava. Também influiu muito sobre esse livro uma circunstância pessoal, que foi a doença que eu tive e que me fez perder a perna esquerda. Eu tive uma série de alucinações por causa da necrose do pé, e essas alucinações eram muito vivas, semelhantes às produzidas pelo LSD, e sempre ligadas a experiências passadas.
Folha - Mas o sr. nunca escreveu sob um estado alucinatório ou algo assim, não?
Paes - Não, não. O sonho, a alucinação, só oferece o ponto de partida. Depois, esses elementos são trabalhados pela sua consciência até adquirirem aquela lógica poética que eles trazem, virtualmente, dentro de si. A função da artesania é exatamente trazer à luz a lógica que emana dessas visões.
Folha - Isso talvez seja uma das coisas que distancia o sr. da poesia concreta: o reconhecimento de que há uma fonte de criação poética que não é estritamente cerebral.
Paes - Mas tudo é cerebral. O sonho é cerebral também. A diferença é que eu acredito piamente na inspiração, não como uma visitação superior, ou uma insuflação da musa, nada disso. Mas acredito, sim, na inspiração. É ela, é o inconsciente, ou o subconsciente, que faz as coisas. Ele dá o ponto de partida. O que o consciente faz é trabalhar esse material, descobrir a lógica que há dentro dele e desenvolvê-la.
Folha - O que, além disso, distancia o sr. dos concretos?
Paes - Houve um momento em que a proposta da poesia concreta me pareceu muito pertinente. Havia uma uma certa metaforização excessiva na poesia brasileira, que era uma poesia muito "literária", e aquela busca que os concretos empreendiam do osso do poema me pareceu uma reação positiva contra essas enxúndias retóricas em que a poesia mergulhava.
Mas como eu não tenho raízes poundianas, nem mallarmaicas, toda aquela teorização acerca da espacialidade da expressão nunca me tocou. O que me interessou mesmo foi a parte oficinal dos concretos. O Haroldo, o Augusto (de Campos) e o Décio (Pignatari) são bons poetas, imaginativos, brilhantes.
Folha - Como é seu método de tradução.
Paes - Costumo dizer que minha tradução é uma marcação palavra a palavra do original. Palavra por palavra eu vou ao dicionário ver o que significa, vou a uma gramática para saber qual é a flexão, o caso gramatical.
Eu sempre me considero um divulgador. As traduções que eu faço, que são sobretudo na área da poesia, visam a aumentar o número de aficionados. Elas têm uma função, eu não diria pedagógica, mas aculturante, no sentido de trazer mais adeptos à leitura de poesia, oferecendo a eles, em traduções as melhores que eu possa fazer, autores importantes, e procurando transmitir a eles o encantamento que a descoberta desses poetas me provocou.
Folha - O sr. já lamentou a falta de espaço na imprensa para o jornalismo literário. Gostaria que o sr. falasse sobre o texto da imprensa de um modo geral.
Paes - É difícil falar sobre isso, porque eu não leio jornais há uns dez anos. Houve um tempo em que eu andava nervoso, preocupado, com insônia, e eu descobri que era por causa dos jornais. Todo dia eu devorava aquela coisa, de modo obsessivo, e isso me fazia mal. Porque, para o jornal, a boa notícia é a má notícia. O jornal é o repositório da má notícia, e ele te dá do mundo a pior imagem possível.
Eu perdia muito tempo lendo jornal, e hoje eu aproveito melhor esse tempo. Por que, por exemplo, perder tempo lendo sobre a guerra do Golfo se eu posso ler a "Ilíada"? Guerra por guerra... (risos)
Acho que o indivíduo hoje tem que poder defender seu direito à desinformação, porque ele é bombardeado por uma quantidade espantosa de informações, e 99% delas são totalmente irrelevantes.

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